Eu não possuo o meu corpo


Eu não possuo o meu corpo — como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma — como posso possuir com ela? Não compreendo o meu espírito — como através dele compreender?

Não possuímos nem um corpo nem uma verdade — nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras. Sombras de ilusões e a nossa vida é oca por fora e por dentro.

Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer — eu sou eu?

Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.

Quando outro possui esse corpo, possui nele o mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.

Possuimos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?

Se do que comes, dissesses, “eu possuo isto”, eu compreendia-te. Porque sem dúvida o que comes, tu o incluis em ti, tu o transformas em matéria tua, tu o sentes entrar em ti e pertencer-te. Mas do que comes não falas tu de “posse”. A que chamas tu possuir?


Título: Eu não possuo o meu corpo
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 364
Página: 335 - 336
Nota: [9-29 e 94-76, ms.];