Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-29)

Passei entre elles extrangeiro


L. do D.

Passei entre elles extrangeiro porém nenhum viu que
eu o era. Vivi entre elles espião , e ninguem,
nem eu, suspeitou que eu o fosse. Todos me tinham por pa-
rente: nenhum sabia que me haviam trocado à nascença.
Assim fui egual aos outros sem similhança, irmão de to-
dos sem ser da familia.

Vinha de prodigiosas terras, de paisagens melhores
que a vida, mas das terras nunca fallei, senão commigo,
e das paisagens, vistas se sonhava, nunca lhes dei no-
ticia. Meus passos eram como os d'elles nos soalhos e
nas lages, mas o meu coração estava longe, ainda que ba-
tesse perto, senhor falso de um corpo desterrado e ex-
tranho.

Ninguem me conheceu sob a mascara da egualha, nem
soube nunca que era mascara, porque ninguem sabia que
neste mundo ha mascarados. Ninguem suppoz que ao pé de
mim estivesse sempre outro, que afinal era eu. Julgaram-
me sempre identico a mim.

Abrigaram-me as suas casas, as suas mãos apertaram
a minha, viram-me passar na rua como se eu lá estives-
se; mas quem sou não esteve nunca naquellas salas, quem
vivo não tem mãos que outros apertem, quem me conheço
não tem ruas por onde passe, a não ser que sejam todas
as ruas, nem que nellas o veja, a não ser que elle mesmo
seja todos os outros.

Vivemos todos longinquos e anonymos; disfarçados,
soffremos desconhecidos. A uns, porém, esta distancia
entre um ser e elle mesmo nunca se revela; para outros
é de vez em quando illuminada, de horror ou
de magua, por um relampago sem limites; mas para outros
ainda é essa a dolorosa constancia e quotidianidade da vida.

Saber bem que quem somos não é comnosco, que o que
pensamos ou sentimos é sempre uma traducção, que o que
queremos o não quizemos, nem porventura alguem o quiz —
saber tudo isto a cada minuto, sentir tudo isto em cada
sentimento, não será isto ser extrangeiro na propria alma,
exilado nas proprias sensações?

Mas a mascara, que estive fitando inerte, e que fallava
à esquina com um homem sem mascara nesta noite de fim de
Carnaval, por fim extendeu a mão e se despediu rindo. O
homem natural seguiu à esquerda, pela travessa a cuja esqui-
na estava. A mascara — dominó sem graça — caminhou em
frente, afastando-se entre sombras e acasos de luzes,


numa despedida definitiva e alheia ao que eu estava pen-
sando. Só então reparei que havia mais na rua que os can-
dieiros accesos, e, a turvar onde elles não estavam, um
luar vago, occulto, mudo, cheio de nada como a vida...

                                          7/4/1933.