INTERVALO [Antefalhei a vida]


INTERVALO

Antefalhei a vida, porque nem sonhando-a ela me apareceu deleitosa. Chegou até mim o cansaço dos sonhos... Tive ao senti-lo uma sensação extrema e falsa, como a de ter chegado ao término de uma estrada infinita. Transbordei de mim não sei para onde, e aí fiquei estagnado e inútil. Sou qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro, não sei quem é que me procura. Um tédio a tudo amolece-me. Sinto-me expulso da minha alma.

Assisto a mim. Presenceio-me. As minhas sensações passam diante de não sei que olhar meu como coisas externas. Aborreço-me de mim em tudo. Todas as coisas são, até às suas raízes de mistério, da cor do meu aborrecimento.

Estavam já murchas as flores que as Horas me entregaram. A minha única acção possível é i-las desfolhando lentamente. E isso é tão complexo de envelhecimentos!

A mínima acção é-me dolorosa como uma heroicidade... O mais pequeno gesto pesa-me no ideá-lo, como se fora uma coisa que eu realmente pensasse em fazer.

Não aspiro a nada. Dói-me a vida. Estou mal onde estou e mal onde penso em poder estar.

O ideal era não ter mais acção do que a acção falsa dum repuxo — subir para cair no mesmo sítio, brilhar ao sol sem utilidade nenhuma e fazer som no silêncio da noite para que quem sonhe pense em rios no seu sonho e sorria esquecidamente.


Título: INTERVALO [Antefalhei a vida]
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 182
Página: 196 - 197
Nota: [138A-5, ms.];