Não se subordinar a nada


L. do D.

Não se subordinar a nada — nem a um homem, nem a um amor, nem a uma idea, ter aquella independencia longinqua que consiste em não crer na verdade, nem, se a houvesse, na utilidade do conhecimento d'ella — tal é o estado em que, parece-me, deve decorrer, para consigo mesma, a vida intima intellectual dos que não vivem sem pensar. Pertencer — eis a banalidade. Credo, ideal, mulher ou profissão — tudo isso é a cella e as algemas. Ser é estar livre. A mesma ambição se vão orgulho e paixão é um fardo, não nos orgulhariamos se comprehendessemos que é um cordel pelo qual nos puxam. Não: nem ligações connosco! Livres de nós como dos outros, contemplativos sem extase, pensadores sem conclusão, viveremos, libertos de Deus, o pequeno intervalo que as distracções dos algozes concedem ao nosso extase na parada. Temos amanhã a guilhotina. Se a não tivessemos amanhã tel-a-hiamos depois de amanhã. Passeemos ao sol o repouso antes do fim, ignorantes voluntariamente dos propositos e dos perseguimentos. O sol dourará nossas frontes sem rugas e a briza terá frescura para quem deixar de esperar.

Atiro a caneta pela secretaria fóra e ella rola, regressando, sem que eu a apanhe, pelo declive onde trabalho.

Senti tudo de repente. E a minha alegria manifesta-se por este gesto da raiva que não sinto.


Título: Não se subordinar a nada
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 414
Página: 157 - 158
Nota: [2-69, ms.];