Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 3-42r)

Meditei hoje, num intervallo de sentir


L. do D.                                    25/4/1930

Meditei hoje, num intervallo de sentir, na fórma de
prosa de que uso. Em verdade, como escrevo? Tive, como
muitos teem tido, a vontade pervertida de querer ter um
systema e uma norma. É certo que escrevi antes da norma e
do systema; nisso, porém, não sou differente dos outros.

Analysando-me á tarde, descubro que o meu systema de
estylo assenta em dois principios, e immediatamente, e á
boa maneira dos bons classicos, erijo esses dois principios
em fundamentos geraes de todo estylo: dizer o que se sente
exactamente como se sente — claramente, se é claro;
obscuramente, se é obscuro; confusamente, se é confuso —;
comprehender que a grammatica é um instrumento, e não uma
lei.

Supponhamos que vejo deante de nós uma rapariga de mo-
dos masculinos. Um ente humano vulgar dirá d'ella, "Aquella
rapariga parece um rapaz". Um outro ente humano vulgar,
já mais proximo da consciencia de que fallar é dizer, dirá
d'ella, "Aquella rapariga é um rapaz". Outro ainda, egual-
mente consciente dos deveres da expressão, mas mais animado
do affecto pela concisão, que é a luxuria do pensamento,
dirá della, "Aquelle rapaz". Eu direi, "Aquella rapaz",
violando a mais elementar das regras da grammatica, que
manda que haja concordancia de genero, como de numero, entre
a voz substantiva e a adjectiva. E terei dito bem; terei
fallado em absoluto, photographica-
mente
, fóra da chateza, da norma, e da quotidianidade. Não terei fallado: terei dicto. Diminuo-me.

A grammatica, definindo o uso, faz divisões legitimas
e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos;
porém o homem de saber dizer tem muitas vezes
que converter um verbo transitivo em intransitivo para photo-
graphar o que sente, e não para, como o commum dos animaes
homens, o ver ás escuras. Se quizer dizer que existo, direi
"Sou". Se quizer dizer que existo como alma separada, direi
"Sou eu". Mas se quizer dizer que existo como entidade que
a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a
funcção divina de se crear, como hei de empregar o verbo
"ser" senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então,
triumphalmente, anti-grammaticalmente supremo, direi "Sou-
me". Terei dito uma philosophia em duas palavras pequenas.
Que preferivel não é isto a não dizer nada em quarenta phra-
ses? /Que mais se pode exigir da philosophia e da dicção?/

Obedeça á grammatica quem não sabe pensar o que sente.
Sirva-se d'ella quem sabe mandar nas suas expressões. Conta-
se de Sigismundo, Rei de Roma, que, tendo, num discurso pu-
blico, commettido um erro de grammatica, respondeu a quem
d'elle lhe fallou apontou lh'o designou revelou, "Sou Rei de Roma, e acima da grammatica".
E a historia narra que ficou sendo conhecido nella como
Sigismundo "super-grammaticam". Maravilhoso symbolo! Cada homem que sabe dizer
o que diz é, em seu modo, Rei de Roma. O titulo não é mau

e a alma é
ser-se.

O titulo é regio, e a razão do titulo impossivel.