Na perfeição nítida do dia
Na perfeição nítida do dia estagna contudo o ar cheio de sol. Não é a pressão presente da trovoada futura, mal-estar
dos corpos involuntários, vago baço do céu azul deveras.
É o torpor sensível da insinuação do ócio, pluma roçando
leve a face a adormecer. É estio mas verão. Apetece o campo até a quem não gosta dele.
Se eu fora outro, penso, este seria para mim um dia feliz, pois o sentiria sem pensar nele. Concluiria com uma alegria de antecipação o meu trabalho normal — aquele que me é monotonamente anormal todos os dias. Tomaria o carro para Benfica, com amigos combinados. Jantaríamos, em pleno fim de sol, entre hortas. A alegria em que estaríamos seria parte da paisagem, e por todos, quantos nos vissem, reconhecida
como de ali.
Como, pórem, sou eu, gozo um pouco o pouco que é imaginar-me esse outro. Sim, logo ele-eu, sob parreira ou árvore, comerá o dobro do que sei comer, beberá o dobro do que ouso beber, rirá o dobro do que posso pensar em rir. Logo ele, eu agora. Sim, um momento fui outro: vi, vivi, em outrem essa alegria humilde e humana de existir como um animal em mangas de camisa. Grande dia que me fez sonhar assim! É tudo azul e sublime no alto como o meu sonho efémero de ser caixeiro de praça com saúde em não sei que férias de fim de dia.