Não sei o que é o tempo


L. do D.

23-5-1932

Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que elle tem, se tem alguma. A do relogio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fóra. A das emoções sei tambem que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação d'elle. A dos sonhos é errada; nelles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro.

Julgo, ás vezes, que tudo é falso, e que o tempo não é mais que uma moldura para enquadrar o que lhe é estranho. Na recordação, que tenho da minha vida passada, os tempos estão dispostos em niveis e planos absurdos, sendo eu mais jovem em certo episodio dos quinze annos solemnes que em outro da infancia sentada entre brinquedos.

Emmaranha-se-me a consciencia se penso nestas coisas. Presinto um erro em tudo isto; não sei, porém, de que lado está. É como se assistisse a uma sorte de prestidigitação, onde, por ser tal, me soubesse enganado, porém não concebesse qual a technica, ou a mechanica, do engano.

Chegam-me, então, pensamentos absurdos, que não consigo todavia repellir como absurdos de todo. Penso se um homem que medita devagar dentro de um carro que segue depressa está indo depressa ou devagar. Penso se serão eguaes as velocidades identicas com que cahem no mar o suicida e o que se desequilibrou na esplanada. Penso se são realmente synchronicos os movimentos, que occupam o mesmo tempo, em os quaes fumo um cigarro, escrevo este trecho e penso obscuramente.

De duas rodas no mesmo eixo podemos pensar que ha sempre uma que estará mais adeante, ainda que seja fracções de millimetro. Um microscopio exaggeraria este deslocamento até o tornar quasi inacreditavel, impossivel se não fôsse real. E porque não ha o microscopio de ter razão contra a má vista? São considerações inuteis? Bem o sei. São illusões da consideração? Concedo. Que coisa, porém, é esta que nos mede sem medida e nos mata sem ser? E é nestes momentos, em que nem sei se o tempo existe, que o sinto como uma pessoa, e tenho vontade de dormir.


Título: Não sei o que é o tempo
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 432
Página: 173 - 175
Data: 23-05-1932
Nota: [3-73, dact.];