Experimento - Usa (BNP/E3, 4-7)

Gósto de dizer


L. do D.

Gósto de dizer. Direi melhor: gósto de palavrar.
As palavras são para mim corpos tocaveis, sereias visiveis, sensualidades incorpo-
radas meu. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse
de nenhuma especie — nem sequer mental ou de sonho —, transmudou-
se-me o sexo para aquillo que em mim cria rhythmos verbaes, ou os
escuta em outros. Estremeço se dizem bem. Tal pagina de Fialho,
tal pagina de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em
todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer
inattingivel que estou tendo. Tal pagina, até, de Vieira, na sua
fria perfeição de engenharia grammatical syntactica, me faz tremer como um
ramo ao vento, num delirio passivo de coisa movida.

Como todos os grandes apaixonados, gosto da delicia do deli-
rio da perda de mim, com em que o goso da entrega se sente soffre inteiramente. E, assim, muitas ve-
zes, escrevo sem querer pensar, num delirio devaneio externo, deixando que
as palavras me façam festas, creança menina ao collo d'ellas. São
phrases sem sentido, decorrendo morbidas, numa fluidez de agua
sentida, correr esquecer-se de ribeiro em que as ondas se mixturam e indefinem,
tornando-se sempre outras, succedendo a si mesmas. Assim
as idéas, as imagens, tremulas de expressão, passam por mim em cor-
tejos sonoros de côr sedas esbatidas, onde um luar de idéa bruxuleia
malhado e confuso.

Não chóro por nada que a vida traga ou leve (tire).
Ha, porém, paginas de prosa que me teem feito chorar. Lembro-me,
como do que vejo estou vendo, da noite em que, ainda creança, li numa selecta,
a celebre pagina o passo celebre de Vieira sobre Salomão. "Fabricou Salo-
mão um palacio..." E fui lendo, até ao fim, tremulo, confuso; de-
pois rompi em lagrimas, em lagrimas felizes, como nenhuma felici-
dade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará
imitar. Aquelle movimento hieratico da nossa amada clara lingua majesto-
sa, aquelle exprimir das idéas nas palavras inevitaveis, correr
de agua porque ha declive, aquelle assombro vocalico onde os sons
parecem os de um côro accorde angelico — tudo isto me toldou como
uma grande emoção politica. E, disse, chorei; hoje, relembrando,
chóro. Não é — não — a saudade da infancia, de que não tenho sau-
dades: é a saudade da emoção d'aquelle momento, a magua de não
poder já ler sentir pela primeira vez aquelle aquella grande trecho certeza symphonico symphonica.

Não tenho sentimento nenhum politico ou social.
Tenho, porém, num sentido, um sentimento patriotico.
A minha patria é a lingua portugueza. Nada me pesaria que invadissem
ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente.
Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que tenho, não
quem escreve mal portuguez, quem não sabe syntaxe, quem escreve em
orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa
propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia
sem ipsilon, como um escarro directo que não sei quem cuspiu
me enoja independentemente de quem o cuspisse.


Sim, porque a orthographia tambem é gente. A palavra
é completa vista e ouvida. E a gala da translitteração greco-
romana veste-m'a do seu vero manto regio, pelo qual é rainha
e senhora.