Ás vezes, quando ergo a cabeça


L. do D.

Ás vezes, quando ergo a cabeça estonteada dos livros em que escrevo as contas alheias e a ausencia de vida propria, sinto uma nausea physica, que pode ser de me curvar, mas que transcende os números e a desillusão. A vida desgosta-me como um remédio inútil. E é então que eu sinto com visões claras como seria facil o afastamento d'este tedio se eu tivesse a simples força de o querer deveras afastar.

Vivemos pela acção, isto é, pela vontade. Aos que não sabemos querer — sejamos genios ou mendigos — irmana-nos a impotência. De que me serve citar-me génio se resulto ajudante de guarda-livros? Quando Cesário Verde fez dizer ao médico que era, não o Sr. Verde empregado no commercio, mas o poeta Cesário Verde, usou de um d'aquelles verbalismos do orgulho inutil que suam o cheiro da vaidade. O que elle foi sempre, coitado, foi o Sr. Verde empregado no commercio. O poeta nasceu depois de elle morrer, porque foi depois de elle morrer que nasceu a appreciação do poeta.

Agir, eis a intelligencia verdadeira. Serei o que quizer. Mas tenho que querer o que fôr. O exito está em ter exito, e não em ter condições de exito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não fizerem alli?


Título: Ás vezes, quando ergo a cabeça
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 85
Página: 89 - 90
Nota: [1-89, dact.];