Deus - Usa (BNP/E3, 5-6)

Cascata


                        Cascata.

A creança sabe que a boneca não é real,
e trata-a como real, até choral-a
e se desgostar quando se parte. A arte da creança
é a de irrealizar. Bendita essa
edade errada da vida, quando se nega a vida o amor por
não haver sexo, quando se nega a realidade
por brincar, tomando por reaes a cousas que
o não são!

Que eu seja volvido creança e o fique
sempre, sem que me importem os valôres que os
homens dão ás cousas nem as relações ligações que os
homens estabelecem entre ellas. Eu, quando era pequeno,
punha muitas vezes os soldados de chumbo de pernas
para o ar... E ha argumento algum, com geito
logico para convencer, que nos prove que os
soldados reaes não devem andar de cabeça para
baixo?

A creança não dá mais valôr ao ouro do que
ao vidro. E na verdade, o ouro vale
mais? — A creança acha obscuramente
absurdos as paixões, as raivas, os receios que
vê esculpidos nos gestos adultos. E não são
na verdade absurdos e vãos todos os nossos receios,
e todos os nossos odios, e todos os amores?


Ó divina e absurda intuição infantil! Visão
verdadeira das cousas, que nós vestimos de convenções no
mais nu vel-as, que nós embrumamos de
idéas nossas no mais directo olhal-as!

Será Deus uma creança muito grande? O
universo inteiro não parece uma brincadeira,
uma partida de creança travessa? Tão irreal,
tão        , tão

Lancei-vos, rindo, esta idéa ao ar e vêde
como ao vel-a distante de mim de repente
vejo o que de horrorosa ella é e
( (Quem sabe se ella não contem a verdade?)
E ella cahe e quebra-se-me aos pés, em pó
de horror e estilhaços de mysterio...

Accórdo para saber que existo...

Um grande tedio incerto gorgoleja , errada-
mente fresco ao ouvido, pela cascata, cortiçada
abaixo, lá no fundo estupido do jardim.
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