O Amante Visual


L. do D.
O Amante Visual.

Nem em torno d'essas figuras, com cuja contemplação me entretenho, é meu costume tecer qualquer enredo da fantasia. Vejo-as, e o valor d'ellas para mim está só em serem vistas. Tudo mais, que lhes accrescentasse, diminuil-as-hia, porque diminuiria, por assim dizer, a sua "visibilidade".

Quanto eu fantasiasse d'ellas, forçosamente, no proprio momento de fantasiar, eu o conheceria como falso; e, se o sonhado me agrada, o falso me repugna. O sonho puro encanta-me, o sonho que não tem relação com a realidade, nem ponto de contacto com ella. O sonho imperfeito, com ponto de partida na vida, desgosta-me, ou, antes, me desgostaria se eu me embrenhasse nelle.

Para mim a humanidade é um vasto motivo de decoração, que vivo pelos olhos e pelos ouvidos, e, ainda, pela emoção psychologica. Nada mais quero da vida senão o assistir a ella. Nada mais quero de mim senão o assistir á vida.

Sou como um ser de outra existencia que passa indefinidamente interessado atravez d'esta. Em tudo sou alheio a ella. Ha entre mim e ella como um vidro. Quero esse vidro sempre muito claro, para a poder examinar sem falha de meio intermedio; mas quero sempre o vidro.

Para todo espirito scientificamente constituido, vêr numa coisa mais que o que lá está é vêr menos essa coisa. O que materialmente se accrescenta, espiritualmente a diminue.

Attribúo a este estado de alma a minha repugnancia pelos museus. O museu, para mim, é a vida inteira, em que a pintura é sempre exacta, e só pode haver inexactidão na imperfeição do contemplador. Mas essa imperfeição, ou faço por diminuil-a, ou, se não posso, contento-me com que assim seja, poisque, como tudo, não pode ser senão assim.


Título: O Amante Visual
Heterónimo: Não atribuído
Número: 127
Página: 132
Data: 1916 (low)
Nota: [5-58r];