Encaro serenamente


Encaro serenamente, sem mais nada que o que na alma represente um sorriso, o fechar-se-me sempre a vida nesta Rua dos Douradores, neste escritório, nesta atmosfera desta gente. Ter o que me dê para comer e beber, e onde habite, e o pouco espaço livre no tempo para sonhar, escrever — dormir — que mais posso eu pedir aos Deuses ou esperar do Destino?

Tive grandes ambições e sonhos dilatados — mas esses também os teve o moço de fretes ou a costureira, porque sonhos tem toda a gente: o que nos diferença é a força de conseguir ou o destino de se conseguir connosco.

Em sonhos sou igual ao moço de fretes e à costureira. Só me distingue deles o saber escrever. Sim, é um acto, uma realidade minha que me diferença deles. Na alma sou seu igual.

Bem sei que há ilhas ao Sul, e grandes paixões cosmopolitas, e ☐

Se eu tivesse o mundo na mão, trocava-o, estou certo, por um bilhete para a Rua dos Douradores.

Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros, e a poesia ou a literatura uma borboleta que, poisando-me na cabeça, me torne tanto mais ridículo quanto maior for a sua própria beleza.

Terei saudades do Moreira, mas o que são saudades perante as grandes ascenções?

Sei bem que o dia, em que for guarda-livros da casa Vasques & Cª, será um dos grandes dias da minha vida. Sei-o como uma antecipação amarga e irónica, mas sei-o com a vantagem intelectual da certeza.


Título: Encaro serenamente
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 18
Página: 61 - 62
Nota: [2-39, 40 e 41, ms.];