Intervallo Doloroso


L. do Des.
Int[ervallo] Dol[oroso]

Nem no orgulho tenho consolação. De quê orgulhar-me se não sou o creador de mim-proprio. E mesmo que haja em mim de que envaidecer-me, quanto para me não envaidecer.

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Jazo a minha vida. E nem sei fazer com o sonho o gesto de me erguer, tão até á alma estou despido de saber ter um esforço.

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Os fazedores de systemas metaphysicos, os ☐ de explicações psychologicas são ainda jovens no soffrimento. Systematizar, explicar o que é senão ☐ e construir? E tudo isso — arranjar, dispôr, organizar — o que é senão esforço realizado — e quão desoladoramente isso é vida!

Pessimista — eu não o sou. Ditosos os que conseguem traduzir para universal o seu soffrimento. Eu não sei se o mundo é triste ou mau nem isso me importa, porque o que os outros soffrem me é aborrecido e indifferente. Logo que não chorem ou gemam, o que me irrita e incommoda, nem um encolher de hombros tenho — tão fundo me pesa o meu desdem por elles — para o seu soffrimento.

Mas eu quero crêr que a vida seja meio luz meio sombras. Eu não sou pessimista. Não me queixo do horror da vida. Queixo-me do horror da minha. O unico facto importante para mim é o facto de eu existir e de eu soffrer e de não poder sequer sonhar-me de todo por fóra de me sentir soffrendo.

Sonhadores felizes são os pessimistas. Formam o mundo á sua imagem e assim sempre conseguem estar em casa. A mim o que me doe mais é a differença entre o ruido e a alegria do mundo e a minha tristeza e o meu silencio aborrecido.

A vida com todas as suas dores e receios e solavancos deve ser boa e alegre, como uma viagem em velha diligencia para quem vae acompanhado (e a pode vêr).

Nem ao menos posso sentir o meu soffrimento como sinal de grandeza. Não sei se o é. Mas eu soffro com cousas tão reles, ferem-me cousas tão banaes, que não ouso insultar com essa hypothese a hypothese de que eu possa ter genio.

A gloria de um poente bello, com a sua belleza: nunca me alegra. Ante elles eu digo sempre: como quem é feliz se deve sentir contente ao ver isto!

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E este livro é um gemido. Escripto elle já o não é o livro mais triste que ha em Portugal.

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Ao pé da m[inha] dôr todas as outras dores me parecem falsas ou minimas. São dores de gente feliz ou dores de gente que vive e se queixa. As minhas são de quem se encontra encarcerado da vida, aparte...

Entre mim e a vida...

De modo que tudo o que angustia vejo. E tudo o que alegra não sinto. E reparei que o mal mais se vê que se sente, a alegria mais se sente do que se vê. Porque não pensando, não vendo, certo contentamento adquire-se, como o dos mysticos e dos bohemios e dos /canalhas/. Mas todo o mal entra [em] casa pela janella da observação e pela porta do pensamento.

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Título: Intervallo Doloroso
Heterónimo: Não atribuído
Número: 21
Página: 28 - 29
Data: 1913 (low)
Nota: [9-43r a 46r];