ANEXO | 499


Lisboa, 14 de Março de 1916.
Meu querido Sá-Carneiro:

Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental — uma ansia afflicta de fallar comsigo. Como de aqui se deprehende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto — que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da phrase fallará por mim.

Estou num d'aquelles dias em que nunca tive futuro. Ha só um presente immovel com um muro de angustia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão intima de todo o meu soffrimento. Ha barcos para muitos portos, mas nenhum‹a› para a vida não doer, nem ha desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu ha muito tempo, mas a minha mágua é mais antiga.

Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciencia do meu corpo, que sou a criança triste em quem a ‹v›/V\ida bateu. Puzeram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia quatorze de Março, ás nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.

No jardim que entrevejo pelas janellas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ‹bri› ter balouços para esquecer a hora.

Pouco mais o menos isto, mas sem estylo, é o meu estado de alma neste momento. Como á veladora do "Marinheiro", ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Doe-me a vida aos poucos, a‹os› goles, por intersticios. Tudo isto está impresso em typo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.

Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as cousas de nexo hysterico que ahi vão sahiram expontaneas do que sinto. Mas v. sentirá bem que esta tragedia irrepresentavel é de uma realidade de cabide ou de chavena — cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.

Foi por isto que o 〈p〉/P\rincipe não reinou. Esta phrase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as phrases absurdas dão uma grande vontade de chorar.

Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no correio, amanhãa, relendo-a, me demore a copial-a á machina, para inserir phrases e esgares d'ella no "Livro do Desasocego". Mas isso nada roubará á sinceridade com que a escrevo, nem á dolorosa inevitabilidade com que a sinto.

As ultimas notícias são estas. Ha tambem o estado de guerra com a Allemanha, mas já antes d'isso a dôr fazia soffrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda d'uma caricatura casual.

Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se soffre, um goso astucioso dos solavancos da alma, não muito differentes d'estes.

De que côr será sentir?
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M
Milhares de a〈g〉/b\raços do seu, sempre muito seu
                                                  (a) Fernando Pessoa.

P. S. — Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanhã, antes de lh'a mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escripto o meu psychismo, com todas as suas attitudes sentimentaes e intellectuaes, com toda a sua hystero-neurasthenia fundamental, com todas aquellas intersecções e esquinas na consciencia de si-proprio que d'elle são tão caracteristi〈v〉/c\as...

Você acha-me razão, não é verdade?


Título: ANEXO | 499
Heterónimo: Não atribuído
Número: 650
Página: 987 - 988
Data: 14-03-1916
Nota: [114(3)-35, dact.];
Nota: Jerónimo Pizarro edita esta carta como anexo ao texto 499.