Deus - Usa (BNP/E3, 4-82v-83)

Esthetica da Indifferença


Esthetica da Indifferença

Perante cada cousa o que o
sonhador deve procurar sentir
é a nitida indifferença que
ella, no que cousa, lhe causa.

Saber, com um immediato
instincto, abstrahir de cada
objecto ou acontecimento o que
elle pode ter de sonhavel, dei-
xando morto no Mundo Exterior
tudo quanto elle tem de
real — eis o que o sabio deve
procurar realizar em si-pro-
prio.

Nunca sentir sinceramente
os seus proprios sentimentos, e
elevar o seu palido triumpho
ao ponto de olhar indifferente-
mente para as suas proprias
ambições, ancias e desejos;
passar pelas suas alegrias e angustias
como quem passa por quem o que
não lhe interessa...

O maior dominio de si-proprio
é a indifferença por si-proprio,
tendo-se , alma e corpo,


3
por a casa e a quinta onde
o Destino quiz que passassemos
a nossa vida.

Tratar os seus proprios sonhos
e intimos desejos altivamente, en
grand seigneur, [                ],
pondo uma intima delicadeza em
não reparar n'elles. Ter o pudôr
de si-proprio; perceber que na
nossa presença não estamos sós,
que somos testemunhas de nós-
mesmos, e que porisso importa agir
perante nós mesmos como perante
um extranho, com uma estudada
e serena linha exterior, indifferente
porque fidalga, e fria porque in-
differente.

Para não descermos aos nossos
proprios olhos, basta que nos habi-
tuemos a não ter nem ambições
nem paixões, nem desejos nem esperanças,
nem impulsos nem desassocegos. Para
conseguir isto lembre-mo-nos sempre
que estamos sempre em presença nossa,
que nunca estamos sós, para que
possamos estar á vontade. E assim
dominaremos o ter paixões e ambições,
porque paixões e ambições são desescudármo-
nos; não teremos desejos nem esperanças, porque
d. e e. são gestos bruscos e deselegantes;
nem teremos impulsos e desassocegos
porque a a precipitação é uma
indelicadeza para com os olhos olhares dos outros,


4
e a impaciencia é sempre uma grosseria.

O aristocrata é aquelle que nunca
esquece que nunca está só; porisso as
praxes e os protocollos são apanagio das
aristocracias. Interiorizemos o aristocra-
tismo. Arranquemol-o aos salões e aos
jardins, passando-o para a nossa alma o nosso pensamento
e para a nossa consciencia de existirmos.
Estejamos sempre deante de nós em
protocollos e praxes, em gestos estudados
e para- os -outros.

Cada um de nós é uma socie-
dade inteira, (um bairro todo) (todo um bairro) do mysterio a Deus
convém que ao menos tornemos elegante
e distinta a vida d'esse bairro, que nas
festas das nossas sensações haja re-
quinte e recato, e pompa sobria e cortezã
nos banquetes dos nossos pensamentos.
Em torno a nós poderão as outras almas
erguer erguerem-se os seus bairros sujos e pobres; mar-
quemos nitidamente onde o nosso acaba e
começa, e que desde a frontaria dos [nossos]
predios [dos nossos sentimentos ] até ás alcovas
das nossas timidezes, tudo seja fidalgo e
sereno, esculpido n'uma sobriedade elegancia ou surdina
de exhibição.


Saber encontrar a cada sensação o modo
sereno de ella se realizar. Fazer o amôr
resumir-se apenas a uma sombra de um sonho
de amar, pallido e tremulo intervallo entre
os cimos de duas pequenas ondas onde o luar bate.
Tornar o desejo uma cousa inutil e inoffensiva, no
como que sorriso delicado da alma a sós consigo pro-
pria; fazer d'ella uma cousa que nunca pense em
realizar-se nem em dizer-se.
Ao odio adormecel-o como a uma serpente
prisioneira, e dizer ao medo que dos seus
gestos guarde apenas a agonia no olhar, e no olhar
da nossa alma, unica attitude compativel com ser esthetica.