Mar - Usa (BNP/E3, 1-55)

Prosa de Ferias


                    Prosa de Ferias.

L. do D.

A praia pequena, formando uma bahia peque-
nissima, excluida do mundo por dois promontorios em mi-
niatura, era, naquellas ferias de trez dias, o meu re-
tiro de mim mesmo. Descia-se para a praia por uma esca-
da tosca, que começava, em cima, em por escada de madeira,
e a meio se tornava em recorte de degraus na rocha, com corrimão de
ferro ferrujento. E, sempre que eu descia a escada ve-
lha, e sobretudo da pedra aos pés para baixo, sahia
da minha propria existencia, encontrando-me.

Dizem os occultistas, ou alguns d'elles, que ha mo-
mentos supremos da alma em que ella recorda, com a emo-
ção ou com parte da memoria, um momento, ou um
aspecto, ou uma sombra de uma incarnação anterior. E
então, como pois que regressa a um tempo que está mais proximo que
o seu presente da origem e do começo das coisas, sente, em
certo modo, uma infancia e uma libertação.

Dir-se-hia que, descendo aquella escada pouco usada
agora, e entrando lentamente na praia pequena sempre deser-
ta, eu empregava um processo magico para me encontrar
mais proximo da monada possivel que sou. Certos modos e
feições da minha vida quotidiana — representados no meu
ser constante por desejos, repugnancias, preoccupações —
sumiam-se de mim como embuscados da ronda, apagavam-se
nas sombras até se não perceber o que eram, e eu attingia
um estado de distancia intima em que se me tornava dif-
ficil lembrar-me de hontem, ou conhecer como meu o ser que
em mim está vivo todos os dias. As minhas emoções de con-
stantemente, os meus habitos regularmente irregulares,
as minhas fallas com outros, as minhas adaptações á con-
stitução social do mundo — tudo isto me parecia coisas
lidas algures, paginas inertes de uma biographia impres-
sa, pormenores de um romance qualquer, naquelles capitu-
los intervallares que lemos pensando em outra cousa,
e o fio da narrativa se esbambeia até cobriar retrozar pelo
chão.

Então, na praia rumorosa só das ondas proprias, ou
do vento que passava alto, como um grande avião
inexistente, entregava-me a uma nova especie de so-
nhos — coisas informes e suaves, maravilhas da impressão
profunda, sem imagens, sem emoções, limpas como o ceu e
as aguas, e soando, como as volutas desrendando-se do
mar alçante do fundo de uma grande verdade; tremulamente
de um azul obliquo ao longe, esverdeando na chegada com
transparencias de outros tons verde-sujos, e, depois de que-
brar, chiando, os mil braços desfeitos, e os desalongar em areia


amorenada atrigueirada trigueira e espuma desbabada, congregando em si todas as
ressacas, os regressos á liberdade da origem, as sau-
dades divinas, as memorias, como esta que informemente
me não doia, de um estado anterior, ou feliz por bom
ou por outro, um corpo de
saudade com
alma de espuma,
o repouso, a morte,
o tudo ou nada que cerca como um grande
mar a ilha de naufragos que é a vida.

E eu durmia sem somno, desviado já do que via a sentir, crepusculo de mim mesmo, som
de agua entre arvores, calma dos grandes rios, frescu-
ra das tardes tristes, lento arfar do peito branco branquinho do
somno de infancia da contemplação.

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