Tudo ali é quebrado, anónimo e impertencente



Tudo ali é quebrado, anónimo e impertencente. Vi ali grandes movimentos de ternura, que me pareceram revelar o fundo de pobres almas tristes; descobri que esses movimentos não duravam mais que a hora em que eram palavras, e que tinham raiz — quantas vezes o notei com a sagacidade dos silenciosos — na analogia de qualquer coisa com o piedoso, perdida com a rapidez da novidade da notação, e, outras vezes, no vinho do jantar do enternecido. Havia sempre uma relação sistematizada entre o humanitarismo e a aguardente de bagaço, e foram muitos os grandes gestos que sofreram do copo supérfluo ou do pleonasmo da sede.

Essas criaturas tinham todas vendido a alma a um diabo da plebe infernal, avarento de sordidezas e de relaxamentos. Viviam a intoxicação da vaidade e do ócio, e morriam molemente, entre coxins de palavras, num amarfanhamento de lacraus de cuspo.

O mais extraordinário de toda essa gente era a nenhuma importância, em nenhum sentido, de toda ela. Uns eram redactores dos principais jornais, e conseguiam não existir; outros tinham lugares públicos em vista no anuário, e conseguiam não figurar em nada da vida; outros eram poetas até consagrados, mas uma mesma poeira de cinza lhes tornava lívidas as faces parvas, e tudo era um túmulo de embalsamados hirtos, postos com a mão nas costas em posturas de vidas.

Guardo do pouco tempo que me estagnei nesse exílio da esperteza mental uma recordação de bons momentos de graça franca, de muitos momentos monótonos e tristes, de alguns perfis recortados no nada, de alguns gestos dados às serventes do acaso, e, em resumo, um tédio de náusea física e a memória de algumas anedotas com espírito.

Neles se intercalavam, como espaços, uns homens de mais idade, alguns com ditos de espírito pregresso, que diziam mal como os outros, e das mesmas pessoas.

Nunca senti tanta simpatia pelos inferiores da glória pública como quando os vi malsinar por estes inferiores sem querer essa pobre glória. Reconheci a razão do triunfo porque os párias do Grande triunfavam em relação a estes, e não em relação à humanidade.

Pobres diabos sempre com fome — ou com fome de almoço, ou com fome de celebridade, ou com fome das sobremesas da vida. Quem os ouve, e os não conhece, julga estar escutando os mestres de Napoleão e os instrutores de Shakespeare.

Há os que vencem no amor, há os que vencem na política, há os que vencem na arte. Os primeiros têm a vantagem da narrativa, pois se pode vencer largamente no amor sem haver conhecimento célebre do que sucedeu. É certo que, ao ouvir contar a qualquer deses indivíduos as suas Maratonas sexuais, uma vaga suspeita nos invade, pela altura do sétimo desfloramento. Os que são amantes de senhoras de título, ou muito conhecidas (são, aliás, quase todos), fazem um tal gasto de condessas que uma estatística das suas conquistas não deixaria sérias e comedidas nem as bisavós dos títulos presentes.

Outros especializam no conflito físico, e mataram os campeões de boxe da Europa numa noite de pândega, à esquina do Chiado. Uns são influentes junto de todos os ministros de todos os ministérios, e estes são aqueles de que menos há que duvidar, pois não repugna.

Uns são grandes sádicos, outros são grandes pederastas, outros confessam, com uma tristeza de voz alta, que são brutais com mulheres. Trouxeram-nas ali, a chicote, pelos caminhos da vida. No fim ficam a dever o café.

Há os poetas, há os ☐

Não conheço melhor cura para toda esta enxurrada de sombras que o conhecimento direito da vida humana corrente, na sua realidade comercial, por exemplo, como a que me surge no escritório da Rua dos Douradores. Com que alívio eu volvia daquele manicómio de títeres para a presença real do Moreira, meu chefe, guarda-livros autêntico e sabedor, mal vestido e mal tratado, mas, o que nenhum dos outros conseguia ser, o que se chama um homem...