Desde antes de manhã cedo



                                                                                A alternação de
                                                                                trechos assim com
                                                                                os maiores?

10 e 11/09/1931.
L. do D.

Desde antes de manhã cedo, contra o uso solar d'esta cidade clara, a nevoa involvia, num bafo denso, que o sol foi crescentemente dourando, as casas sucessivas, os espaços abolidos, os accidentes da terra e das construcções. Chegada, porém, a hora alta antes do meio-dia, começou a escassear-se a bruma branda, e, em halitos de sombras de veus, a cessar imponderavelmente. Pelas dez horas da manhã só um tenue mau-azular do ceu revelava que a nevoa fôra.

As feições da cidade renasceram do escorregar da mascara do velamento. Como se uma janella se abrisse, o dia já raiado raiou. Houve uma leve mudança nos ruidos de tudo. Appareceram tambem. Um tom azul insinuou-se até nas pedras das ruas e nas auras impessoaes dos transeuntes. O sol era quente, mas ainda humidamente quente. Coava-o invisivelmente a nevoa que já não existia.

O dispertar de uma cidade, seja entre nevoa ou de outro modo, é sempre para mim uma coisa mais enternecedora do que o raiar da aurora sobre os campos. Renasce muito mais, ha muito mais que esperar, quando, em vez de só dourar, primeiro de luz obscura, depois de luz humida, mais tarde de ouro claro, as relvas, os relevos dos arbustos, as palmas de mãos das folhas, o sol multiplica os seus possiveis effeitos nas janellas, nos muros, nos telhados — nas janellas tantas, nos muros tam differentes, nos telhados tam varios — grande manhã diversa a tantas realidades diversas. Uma aurora no campo faz-me bem; uma aurora na cidade faz-me bem e mal, e por isso me faz mais que bem. Sim, porque a esperança maior que me traz tem, como todas as esperanças, aquelle travo longinquo e saudoso de não ser realidade. A manhã do campo existe; a manhã da cidade promette. Uma faz viver; a outra faz pensar. E eu hei sempre de sentir, como os grandes malditos, que mais vale pensar que viver.