Depois dos dias todos de chuva
1-2-1930 Depois dos dias todos de chuva, de novo o céu traz o azul, que escondera, aos grandes espaços do alto.
Entre as ruas, onde as poças dormem como charcos do campo, e a alegria clara que esfria no alto, há um contraste que torna aprazíveis as ruas sujas e primaveril o céu de inverno baço.
É domingo e não tenho que fazer. Nem sonhar me apetece, de tão bem que está o dia. Gozo-o com uma sinceridade de sentidos a que a inteligência se abandona. Passeio como um caixeiro sem mulher. Sinto-me velho, só para ter o prazer de me sentir rejuvenescer.
Na grande praça dominical há um movimento solene de outra espécie de dia. Em S. Domingos há a saída de uma missa, e vai principiar outra. Vejo uns que saem e os que ainda não entram, entrevistos na espera de alguns que nem estão vendo quem sai.
Todas estas coisas não têm importância. São, como tudo no comum da vida, um sono dos mistérios e das ameias, e dali olho, como um arauto que já disse a que ia, a planície da minha meditação.
Outrora, criança, eu ia a esta mesma missa, ou porventura à outra, mas devia ser a esta. Punha, com a devida consciência, o meu único fato melhor, e gozava tudo — até o que não tinha razão de gozar.
Vivia por fora e o fato era limpo e novo. Que mais quer quem tem que morrer e o não sabe, pela mão da mãe?
Outrora gozava tudo isto, porém e só agora, talvez, que compreendo quanto o gozava. Entrava para a missa como para um grande mistério, e saía da missa como para uma clareira.
E assim é que verdadeiramente era, e ainda verdadeiramente é. Só o ser que não crê e tem corpo adulto, com alma que recorda e chora, vive a ficção e o transtorno, o desalinho e a lajem fria.
Sim, o que eu sou fora insuportável se eu não pudesse lembrar-me do que fui. E esta multidão alheia que persiste ainda em sair da missa, e o princípio da multidão possível que começa a chegar para estar para a outra — tudo isto são como barcos que passam por acaso, no rio lento, sob as janelas fechadas do meu lar erguido sobre a margem.
Memórias, domingos, missas, prazer de haver sido, milagre do tempo que ficou por ter passado, e não esquece nunca porque foi meu... Diagonal absurda das sensações prováveis, som súbito de carruagem de praça que soa rodas no fundo dos silêncios ruidosos dos automóveis, e de qualquer modo, por um paradoxo maternal do tempo, subsiste hoje, aqui mesmo, entre o que sou e o que perdi, no intervalo de mim a que chamo eu...
Que sei? Que procuro? Que sinto? Que pediria se tivesse que pedir?