Releio passivamente, recebendo o que sinto
L. do D.
Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquellas phrases simples de Caeiro, na referencia natural do que resulta do pequeno tamanho da sua aldeia. D'alli, diz elle, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e porisso a aldeia é maior que a cidade...
"Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura."
Phrases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dicto, limpam-me de toda a metaphysica que espontaneamente accrescento á vida. Depois de as ler, chego a minha janella sobre a rua estreita, olho o grande ceu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.
"Sou do tamanho do que vejo!" Cada vez que penso esta phrase com toda a attenção dos meus nervos, ella me parece mais destinada a reconstruir constelladamente o universo. "Sou do tamanho do que vejo!" Que grande posse mental vae desde o poço das emoções profundas até as altas estrellas que se reflectem nelle, e, assim, em certo modo, alli estão.
E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metaphysica objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. "Sou do tamanho do que vejo!" E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.
Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvageria ignorada, de dizer palavras aos mysterios altos, de affirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da materia vazia.
Mas recolho-me e abrando. "Sou do tamanho do que vejo!" E a phrase fica-me sendo a alma inteira, encosto a ella todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fóra, cahe a paz indecifravel do luar duro que começa largo com o anoitecer.