A sensação da convalescença



L. do D.

16-7-1932

A sensação da convalescença, sobretudo se se fez /mal/ sentir nos nervos a doença que a precedeu, tem qualquer coisa de alegria triste. Ha um outomno nas emoções e nos pensamentos, ou, antes, um d'aquelles principios de primavera que, salvo que não cahem folhas, parecem, no ar e no ceu, o outomno.

O cansaço sabe bem, e o bem que sabe doe um pouco. Sentimo-nos um pouco àparte da vida, ainda que nella, como que na varanda da casa de viver. Estamos contemplativos sem pensar, sentimos sem emoção definivel. A vontade socega, pois não ha necessidade d'ella.

É então que certas memorias, certas esperanças, certos vagos desejos sobem lentamente a rampa da consciencia, como caminheiros vagos vistos do alto do monte. Memorias de coisas futeis, esperanças de coisas que não fez mal que não fôssem, desejos que não tiveram violencia de natureza ou de emissão, que nunca puderam querer ser.

Quando o dia se ajusta a estas sensações, como hoje, que, ainda que estio, está meio nublado com azues, e um vago vento por não ser quente é quasi frio, então aquelle estado da alma se accentua em que pensamos, sentimos, vivemos estas impressões. Não que sejam mais claras as memorias, as esperanças, os desejos que tinhamos. Mas sente-se mais, e a sua somma incerta pesa um pouco, absurdamente, sobre o coração.

Ha qualquer coisa de longinquo em mim neste momento. Estou de facto á varanda da vida, mas não é bem d'esta vida. Estou por sobre ella, e vendo-a de onde vejo. Jaz deante de mim, descendo em socalcos e resvalamentos, como uma paisagem diversa, até aos fumos sobre casas brancas das aldeias do valle. Se cerrar os olhos, continúo vendo, poisque não vejo. Se os abrir nada mais vejo, poisque não via. Sou todo eu uma vaga saudade, nem do passado, nem do futuro: sou uma saudade do presente, anonyma, prolixa e incomprehendida.