Tu não existes



L. do Desassocego — Fim

I

Tu não existes, eu bem sei, mas sei eu ao certo se existo? Eu, que te existo em mim, terei mais vida real do que tu, do que a vida morta que te vive?

Chamma diluida em parecer aureóla, presença ausente, silencio rhythmico e femea, crepusculo de vaga carne, taça esquecida para o festim, vitral /pintado/ por um pintor-sonho n'uma edade media de outra Terra.

Calice e hostia de requinte casto, altar abandonado de santa ainda viva, Corolla de lyrio sonhado do jardim onde nunca ninguem entrou...

És a unica fórma que não raia tedio, porque és sempre mudavel com o nosso sentimento, porque, como beijas a nossa alegria, embalas a nossa dôr, e ao nosso tedio, és-lhe o opio que conforta e o somno que descança, e a morte que cruza e junta as mãos.

Anjo ☐, de que materia é feita a tua materia alada? que vida te prende a que terra, a ti que és vôo nunca erguido, ascensão estagnada, gesto de enlevo e de descanso?



(ultimo trecho).

II

Creêmos, ó Apenas-Minha, tu por existires e eu por te vêr existir, uma arte outra do que toda a arte /havida/.

Do teu corpo de amphora inutil saiba eu tirar / a aureola esquecida de novos versos / e ao teu rhythmo lento de onda sem origem saibam os meus dêdos trémulos ir buscar as linhas perfidas de uma prosa virgem de ter sido ouvida.

O teu sorriso vago indo-se seja para mim symbolo e emblema visivel do fado do innumero mundo ao saber-se erro e incerteza.

As tuas mãos de tocadora de harpa me fechem as palpebras q[uan]do eu morrer de ter dado a construir-te a m[inha] vida. E tu, que não és ninguem, serás para sempre, ó Suprema, a arte querida dos deuses que nunca fôram, e a mãe virgem e esteril dos deuses que nunca serão.