Esse logar activo de sensações



Esse logar activo de sensações, a minha alma, passeia ás vezes commigo conscientemente pelas ruas nocturnas da cidade, nas horas tedientas em que me sinto um sonho entre sonhos de outra especie, á luz ☐ do gaz, pelo ruido transitorio dos vehiculos.

Ao mesmo tempo que em corpo me embrenho por viellas e sub-ruas, torna-se-me complexa a alma em labyrinthos de sensação. Tudo quanto de afflictivamente pode dar a noção de irrealidade e de existencia fingida, tudo quanto solettra, sem ser ao raciocinio, mas concreta e ☐mente, o quanto é mais do que oco o logar do universo, desenrola-se-me então objectivamente no espirito apartado. Angustia-me, não sei porque, essa extensão objectiva de ruas estreitas, e largas, essa consecução de candieiros, arvores, janellas illuminadas e escuras, portões fechados e abertos, vultos heterogeneamente nocturnos que a minha vista curta, no que de maior imprecisão lhes dá, ajuda a tornar subjectivamente monstruosos, incomprehensiveis e irreaes.

Fragmentos verbaes de inveja, de luxuria, de trivialidade vão de embate ao meu sentido de ouvir. Sussurrados murmurios ☐ ondulam para a minha consciencia.

Pouco a pouco vou perdendo a consciencia nitida de que existo coextensamente com isto tudo, de que realmente me movo, ouvindo e pouco vendo, entre sombras que representam entes e logares onde entes o são. Torna-se-me gradualmente, escuramente, indistinctamente incomprehensivel como é que isto tudo pode ser em face do tempo eterno e do espaço infinito.

Passo d'aqui, por passiva associação de idéas, a pensar nos homens que desse espaço e desse tempo tiveram a consciencia analysadora e comprehendedoramente perdida. Sente-se-me grotesca a idéa de que entre homens como estes, em noites sem duvida como esta, em cidades de certo não essencialmente diversas da em que penso, os Platões, os Scotus Erigenas, os Kants, os Hegels como que se esqueceram disto tudo, como que se tornaram diversos desta gente ☐. E eram da mesma humanidade, ☐

Eu mesmo que passeio aqui com estes pensamentos, com que horrorosa nitidez, ao pensal-os, me sinto distante, alheio, confuso e ☐

Acabo a minha solitaria peregrinação. Um vasto silencio, que sons miudos não alteram no como é sentido, como que me assalta e subjuga. Um cansaço immenso das meras cousas, do simples estar aqui, do ☐ encontrar-me d'este modo pesa-me do espirito ao corpo ☐ Quasi que me surprehendo a querer gritar, de afundando-me que me sinto em um oceano ☐ de uma immensidão que nada tem com a infinidade do espaço nem com a eternidade do tempo, nem com qualquer cousa susceptivel de medida e nome. Nestes momentos de terror supremamente silencioso não sei o que sou materialmente, o que costumo fazer, o que me é usual querer, sentir e pensar. Sinto-me perdido de mim mesmo, fóra do meu alcance. A ancia moral de luctar, o esforço intellectual para systematizar e comprehender, a irrequieta aspiração artista a produzir uma cousa que ora não comprehendo, mas que me lembro de comprehender, e a que chamo belleza, tudo isto se me sóme do instincto do real, tudo isto se me affigura nem digno de ser pensado inutil, vazio e longinquo. Sinto-me apenas um vacuo, uma illusão de uma alma, um logar de um ser, uma escuridão de consciencia onde extranho insecto ☐ procurasse em vão ao menos um logar onde se sentisse a calida *aurora de uma luz.