Viver uma vida desapaixonada


L. do D.

Viver uma vida desapaixonada e culta, ao relento das idéas, lendo, sonhando, e pensando em escrever, uma vida sufficientemente lenta para estar sempre á beira do tedio, bastante meditada para se nunca encontrar nelle. Viver essa vida longe das emoções e dos pensamentos, só no pensamento das emoções e na emoção dos pensamentos. Estagnar ao sol, douradamente, como um lago obscuro rodeado de flores. Ter, na sombra, aquella fidalguia da individualidade que consiste em não insistir para nada com a vida. Ser no volteio dos mundos como uma poeira de flores, que um vento incognito ergue pelo ar da tarde, e o torpor do anoitecer deixa baixar no logar de acaso, indistincta entre coisas maiores. Ser isto com um conhecimento seguro, nem alegre nem triste, reconhecido ao sol do seu brilho e ás estrellas do seu afastamento. Não ser mais, não ter mais, não querer mais... A musica do faminto, a canção do cego, a reliquia do viandante incognito, as passadas no deserto do camello vazio sem destino...


Título: Viver uma vida desapaixonada
Heterónimo: Não atribuído
Número: 418
Página: 412
Data: 1932 (low)
Nota: [9-9r];