Taxonomia Filosófica - Usa Jerónimo Pizarro(172)

Tenho mais pena dos que sonham o provavel


L. do D.

Tenho mais pena dos que sonham o provavel, o legitimo e o proximo, do que dos que devaneiam sobre o longinquo e o estranho. Os que sonham grandemente, ou são doidos e acreditam no que sonham e são felizes, ou são devaneadores simples, para quem o devaneio é uma musica da alma, que os embala sem lhes dizer nada. Mas o que sonha o possivel tem a possibilidade real da verdadeira desillusão. Não me pode pesar muito o não ter conseguido ser imperador romano, mas pode doer-me o nunca ter sequer fallado á costureira que, cerca das nove horas, volta sempre a esquina da direita. O sonho que nos promette o impossivel já nisso nos priva d'elle, mas o sonho que nos promette o possivel intromette-se com a propria vida e delega nella a sua solução. Um vive exclusivo e independente; o outro submisso das contingencias do que acontece.

Porisso amo as paysagens impossiveis e as grandes areas desertas dos plainos onde nunca estarei. As epocas historicas passadas são de pura maravilha, pois desde logo não posso suppor que se realizarão commigo. Durmo quando sonho o que não ha; vou dispertar quando sonho o que pode haver.

Desbruço-me, de uma das janellas de sacada do escriptorio abandonado ao meio-dia, sobre a rua onde a minha distracção sente movimentos de gente nos olhos, e os não vê, da distancia da meditação. Durmo sobre os cotovellos onde o corrimão me doe, e sei de nada como um grande promettimento. Os pormenores da rua parada onde muitos andam destacam-se-me com um afastamento mental: os caixotes apinhados na carroça, os sacos á porta do armazem do outro, e, na montra mais afastada da mercearia da esquina, o vislumbre das garrafas d'aquelle vinho do Porto que sonho que ninguem pode comprar. Isola-se-me o espirito de metade da materia. Investigo com a imaginação. A gente que passa na rua é sempre a mesma que passou ha pouco, é sempre o aspecto fluctuante de alguem, nodoas de movimento, vozes de incerteza, coisas que passam e não chegam a acontecer.

A notação com a consciencia dos sentidos, antes que com os mesmos sentidos... A possibilidade de outras coisas... E, de repente, soa, de traz de mim no escriptorio, a vinda metaphysicamente abrupta do moço. Sinto que o poderia matar por me interromper o eu que eu não estava pensando. Olho-o, voltando-me, com um silencio cheio de odio, escuto anticipadamente, numa tensão de homicidio latente, a voz que elle vae usar para me dizer qualquer coisa. Elle sorri do fundo da casa e dá-me as boas tardes em voz alta. Odeio-o como ao universo. Tenho os olhos pesados de suppor.