Do Livro do Desasocego
Composto por Bernardo Soares, ajudante
de guarda-livros na cidade de Lisboa
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Disse Amiel que uma paisagem é um estado da alma,
mas a phrase é uma felicidade frouxa de sonhador debil.
Desde que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado da
alma. Objectivar é crear, e ninguem diz que um poema fei-
to é um estado de estar pensando em fazel-o. Ver é talvez
sonhar, mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos so-
nhar, é que distinguimos sonhar de ver.
De
resto, de que servem estas especulações de psy-
chologia verbal? Independentemente de mim, cresce herva, cho-
ve
na herva que cresce, e o sol doira a extensão da herva
que cresceu ou vae crescer; erguem-se os montes de muito
antigamente, e o vento passa com o mesmo modo com que Home-
ro, ainda que não existisse, o ouviu. Mais certo era dizer
que um estado da alma é uma paisagem; haveria
na phrase a
vantagem de não conter a mentira de uma theoria, mas tam-
sòmente a verdade de uma metaphora.
Estas palavras casuaes foram-me dictadas pela gran-
de extensão da cidade, vista á luz universal do sol, desde
o alto de São Pedro de Alcantara. Cada vez que assim contemp-
lo uma extensão larga, e me abandono do metro e setenta de
altura, e sessenta e um kilos de peso, em que physicamente
consisto, tenho um sorriso grandemente metaphysico para os
que sonham que o sonho é sonho, e amo a verdade do exterior
absoluto com uma virtude nobre do entendimento.
O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra
Banda são de uma Suissa achatada. Sahe um navio pequeno —
vapor de carga preto — dos lados do Poço do Bispo para a
barra que não vejo. Que os deuses todos me conservem, até
á hora em que cesse este meu aspecto de mim, a noção clara
e solar da realidade externa, o instincto da minha inimpor-
tancia, o comforto de ser pequeno e de poder pensar em ser
feliz.
FERNANDO PESSOA