Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 1-57r)

Encolher de Hombros


L. do D.            Encolher de Hombros.        whole

Damos commummente ás nossas idéas do desco-
nhecido a cor das nossas noções do conhecido: se chamamos á
morte um somno é porque parece um somno por fóra; se
chamamos á morte uma nova vida é porque parece uma coi-
sa differente da vida. Com pequenos mal-entendidos com
a realidade construimos as crenças e as esperanças, e
vivemos das codeas a que chamamos bolos, como as crean-
ças pobres que brincam a ser felizes.

Mas assim é toda a vida; assim, pelo menos, é aquel-
le systema de vida particular a que no geral se chama
civilização. A civilização consiste em dar a qualquer
coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar so-
bre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho ver-
dadeiro criam uma nova realidade. O objecto torna-se
realmente outro, porque o tornámos outro. Manufactura-
mos realidades. A materia prima continua sendo a mesma,
mas a fórma, que a arte lhe deu, afasta-a effectivamen-
te de continuar sendo a mesma. Uma mesa de pinho é pi-
nho, mas também é mesa. Sentamo-nos á mesa e não ao pi-
nho. Um amor é um instincto sexual, porém não amamos
com o instincto sexual, mas com a presupposição de ou-
tro sentimento. E essa presupposição é, com effeito, já
outro sentimento.

Não sei que effeito subtil da luz, ou ruido vago,
ou memoria de perfume ou musica, tangida por não sei
que influencia externa, me trouxe de repente, em pleno
ir pela rua, estas divagações que registro sem pressa,
ao sentar-me, no café, distrahidamente. Não sei onde ia
conduzir os pensamentos, ou onde preferiria conduzil-
os. O dia é de um leve nevoeiro humido e quente, triste
sem ameaças, monotono sem razão. Doe-me qualquer senti-
mento que desconheço; falta-me qualquer argumento não
sei sobre quê; não tenho vontade nos nervos. Estou tris-
te abaixo da consciencia. E escrevo estas linhas, real-
mente mal-notadas, não para dizer isto, nem para dizer
qualquer coisa, mas para dar um trabalho á minha des-
attenção. Vou enchendo lentamente, a traços mol-
les de lapis rombo que não tenho sentimentalidade para
aparar o papel branco de embrulho de sandwiches, que
me forneceram no café, porque eu não precisava de me-
lhor e qualquer servia, desde que fôsse branco. E dou-
me por satisfeito. Reclino-me. A tarde cahe monotona e sem chuva,
num tom de luz desalentado e incerto. E deixo de escre-
ver porque deixo de escrever.