Café - Usa (BNP/E3, 1-74r-75r)

Uma só coisa me maravilha mais


L. do D.

Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com
que a maioria dos homens vive a sua vida: é a intelligencia
que ha nessa estupidez.

A monotonia das vidas vulgares é, apparentemente, pa-
vorosa. Estou almoçando neste restaurante vulgar, e olho,
para além do balcão para a figura do cosinheiro, e, aqui
ao pé de mim, para o creado já velho que me serve, como ha
trinta annos, creio, serve nesta casa. Que vidas são as
d'estes homens? Ha quarenta annos que aquella figura de
homem vive quasi todo o dia numa cosinha; tem umas breves
folgas; dorme relativamente poucas horas; vae de vez em
quando á terra, de onde volta sem hesitação e sem pena;
armazena lentamente dinheiro lento, que se não propõe gas-
tar; adoeceria se tivesse que retirar-se da sua cosinha
(definitivamente) para os campos que comprou na Galliza;
está em Lisboa ha quarenta annos e nunca foi sequer á
Rotunda, nem a um theatro, e ha um só dia de Coliseu — pa-
lhaços nos vestigios interiores da sua vida. Casou não sei
como nem porquê, tem quatro filhos e uma filha, e o seu
sorriso, ao debruçar-se de lá do balcão em direcção a onde
eu estou exprime uma grande, uma solemne, uma contente fe-
licidade. E elle não disfarça, nem que razão para que dis-
farce. Se a sente, é porque verdadeiramente a tem.

E o creado velho que me serve, e que acaba de depôr
ante mim o que deve ser o millionessimo café da sua
deposição de café em mezas? Tem a mesma vida que a do co-
sinheiro, apenas com a differença de quatro ou cinco me-
tros — os que distam da localização de um na
cosinha para a localização do outro na parte de fóra da
casa de pasto. No resto, tem dois filhos apenas, vae mais
vezes á Galliza, já viu mais Lisboa que o outro, e conhe-
ce o Porto, onde esteve quatro annos, e é egualmente feliz.

Revejo, com um pasmo assustado, o panorama d'estas
vidas, e descubro, ao ir ter horror, pena, revolta d'ellas,
que quem não tem nem horror, nem pena, nem revolta, são os
proprios que teriam direito a tel-as, são os mesmos que
vivem essas vidas. É o erro central da imaginação literaria:
suppor que os outros são nós e que devem sentir como nós.
Mas, felizmente para a humanidade, cada homem é só quem é,
sendo dado ao genio, apenas, o ser mais alguns outros.

Tudo, afinal, é dado em relação áquillo em que é dado.
Um pequeno incidente de rua, que chama á porta o cosinhei-
ro d'esta casa, entretem-o mais que me entretem a mim a
contemplação da idéa mais original, a leitura do melhor
livro, o mais grato dos sonhos inuteis. E, se a vida é es-
sencialmente monotonia, o facto é que elle escapou á mono-
tonia mais do que eu. E escapa á monotonia mais facilmente
do que eu. A verdade não está com elle nem commigo, porque
não está com ninguem; mas a felicidade está com elle deveras.


Sabio é quem monotoniza a existencia, pois então cada
pequeno incidente tem um privilegio de maravilha. O
caçador de leões não tem aventura
para além do terceiro leão. Para o meu cosinheiro monotono
uma scena de bofetadas na rua tem sempre qualquer coisa de
apocalypse modesto. Quem nunca sahiu de Lisboa viaja ao in-
finito no carro até Bemfica, e, se um dia vae a Cintra,
sente que viajou até Marte. O viajante que percorreu toda
a terra não encontra, de cinco mil milhas em deante novi-
dade, porque encontra só coisas novas; outra vez a novidade, a velhice
do eterno novo
mas o conceito ab-
stracto de novidade ficou no mar com a segunda d'ellas.

Um homem pode, se tiver a verdadeira sabedoria, gosar
o espectaculo inteiro do mundo numa cadeira, sem saber ler,
sem fallar com alguem, só com o uso dos sentidos e a alma
não saber ser triste.

Monotonizar a existencia, para que ella não seja mono-
tona. Tornar anodyno o quotidiano, para que a mais pequena
coisa seja uma distracção. No meio do meu trabalho de todos
os dias, baço, egual e inutil, surgem-me visões de fuga,
vestigios sonhados de ilhas longinquas, festas em aleas de
parques de outras eras, outras paysagens, outros sentimen-
tos, outro eu. Mas reconheço, entre dois lançamentos, que
se tivesse tudo isso, nada d'isso seria meu. Mais vale, na
verdade, o patrão Vasques que os Reis de Sonho; mais vale,
na verdade, o escriptorio da Rua dos Douradores do que as
grandes aleas dos parques impossiveis. Tendo o patrão Vas-
ques, posso gosar o sonho dos Reis de Sonho; tendo o escripto-
rio da Rua dos Douradores, posso gosar a visão interior das
paysagens que não existem. Mas se tivesse os Reis de Sonho,
que me ficaria para sonhar? Se tivesse as paysagens impossiveis,
que me restaria de impossivel?

A monotonia, a egualdade baça dos dias mesmos, a nenhuma
differença de hoje para hontem — isto me fique sempre, com a
alma disperta para gosar da mosca que me distrahe, passando
casual ante meus olhos, da gargalhada que se ergue voluvel
da rua incerta, a vasta libertação de serem horas de fechar
o escriptorio, o repouso infinito de um dia feriado.

Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fôsse al-
guma coisa, não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros
pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra não o
pode fazer, porque o rei de Inglaterra está privado de ser,
em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidade não
o deixa sentir existir.