Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-36r)

Antes que o estio cesse


L. do D.

Antes que o estio cesse e chegue o outomno, no cálido
intervallo em que o ar pesa e as cores abrandam, as tardes
costumam usar um traje sensivel de gloriola falsa. São compara-
veis áquelles artificios da imaginação em que as saudades são
de nada, e se prolongam indefinidas como rastos de navios
formando a mesma cobra successiva.

Nessas tardes enche-me, como um mar em maré, um sen-
timento peor que o tedio mas a que não compete outro nome se-
não tedio — um sentimento de desolação sem logar, de naufragio
de toda a alma da alma inteira. Sinto que perdi um Deus omnipotente, que a
Substancia de tudo morreu. E o universo sensivel é para mim
um cadaver que amei quando era vida; mas é tudo tornado nada na
luz ainda quente das ultimas nuvens coloridas.

O meu tedio assume aspectos de horror; o meu aborre-
cimento é um medo. O meu suor não é frio, mas é fria a minha
consciencia do meu suor. Não ha mal estar physico corporeo, salvo que
o mal estar da alma é tam grande que passa pelos poros do
corpo e o innunda resfria a elle tambem.

É tam magno o tedio, tam soberano o horror de estar vivo
que não concebo que coisa haja que pudesse servir de leniti-
vo, de antidoto, de balsamo ou esquecimento para elle.
Dormir horroriza-me como tudo. Morrer horroriza-me como tudo.
Ir e parar são a mesma coisa impossivel. Esperar e descrer
equivalem-se em frio e cinza. Sou uma prateleira
de frascos vazios
.

Comtudo que saudade do futuro angustia de não ser outro, se deixo os olhos
vulgares receber a saudação morta do dia illuminado que finda!
Que grande enterro da esperança vae pela calada doirada ainda
dos céus inertes, que cortejo de vacuos e nadas se espalha
a azul rubro que vae ser pallido pelas vastas planicies do
espaço alvar!

Não sei o que quero ou ou que não quero. Deixei de
saber querer, de saber como se quere, de saber as emoções ou
os pensamentos com que ordinariamente se conhece que esta-
mos querendo, ou querendo querer. Não sei quem sou ou o que
sou. Como alguem soterrado sob um muro que se desmoronasse,
jazo sob a vacuidade tombada do universo inteiro. E assim
vou, na esteira de mim mesmo, até que a noite entre e um pouco
do afago de ser differente ondule, como uma brisa, pelo come-
ço da minha impaciencia inconsciencia de mim.

22/8/1931.

Ah, e a lua alta e maior d'estas noites
placidas, mornas de angustia e desassocego!
A paz sinistra da belleza celeste, ironia fria
do ar quente, azul negro
ennevoado de luar e timido de estrellas.