Nada me pesa tanto no desgosto


L. do D.

Nada me pesa tanto no desgosto como as palavras sociaes de moral. Já a palavra "dever" é para mim desagradavel como um intruso. Mas os termos "dever civico", "solidariedade", "humanitarismo", e outros da mesma estirpe, repugnam-me como porcarias que despejassem sobre mim de janellas. Sinto-me offendido com a supposição, que alguem porventura faça, de que essas expressões teem que ver commigo, de que lhes encontro, não só uma valia, mas sequer um sentido.

Vi ha pouco, em uma montra de loja de brinquedos, umas coisas que exactamente me lembraram o que essas expressões são. Vi, em pratos fingidos, manjares fingidos para mesas de bonecas. Ao homem que existe, sensual, egoista, vaidoso, amigo dos outros porque tem o dom da falla, inimigo dos outros porque tem o dom da vida, a esse homem que ha que offerecer com que brinque ás bonecas com palavras vazias de som e tom?

O governo assenta em duas coisas: refrear e enganar. O mal d'esses termos lantejoulados é que nem refreiam nem enganam. Embebedam, quando muito, e isso é outra cousa.

Se alguma coisa odeio, é um reformador. Um reformador é um homem que vê os males superficiaes do mundo e se propõe cural-os aggravando os fundamentaes. O medico tenta adaptar o corpo doente ao corpo são; mas nós não sabemos o que é são ou doente na vida social.

Não posso considerar a humanidade senão como uma das ultimas escolas na pintura decorativa da Natureza. Não distingo, fundamentalmente, um homem de uma arvore; e, por certo, prefiro o que mais decore, o que mais interésse os meus olhos pensantes. Se a arvore me interessa mais, pesa-me mais que cortem a arvore do que o homem morra. Ha idas de poente que me doem mais que mortes de creanças. Em tudo sou o que não sente, para que sinta.

Quasi me culpo de estar escrevendo estas meias reflexões nesta hora em que dos confins da tarde sobe, colorindo-se, uma brisa ligeira. Colorindo-se não, que não é ella que se colora, mas o ar em que boia incerta; mas, como me parece que é ella mesma que se colora, é isso que digo, pois hei por força de dizer o que me parece, visto que sou eu.


Título: Nada me pesa tanto no desgosto
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 486
Página: 230 - 231
Nota: [2-46, dact.];