Não creio alto na felicidade dos animaes


L. do D.

Não creio alto na felicidade dos animaes, senão quando me appetece fallar nella para moldura de um sentimento que a sua supposição saliente. Para se ser feliz é preciso saber-se que se é feliz. Não ha felicidade em dormir sem sonhos, senão sòmente em se dispertar sabendo que se dormiu sem sonhos. A felicidade está fóra da felicidade.

Não ha felicidade senão com conhecimento. Mas o conhecimento da felicidade é infeliz; porque conhecer-se feliz é conhecer-se passando pela felicidade, e tendo, logo já, que deixal-a atraz. Saber é matar, na felicidade como em tudo. Não saber, porém, é não existir.

Só o absoluto de Hegel conseguiu, em paginas, ser duas coisas ao mesmo tempo. O não-ser e o ser não se fundem e confundem nas sensações e razões da vida: excluem-se, por uma synthese às avessas.

Que fazer? Isolar o momento como uma coisa e ser feliz agora, no momento em que se sente a felicidade, sem pensar senão no que se sente, excluindo o mais, excluindo tudo. Enjaular o pensamento na sensação, (...)

o claro sorriso materno da terra cheia, o splendor fechado das trevas altas, (...)

É esta a minha crença, esta tarde. Amanhã de manhã não será esta, porque amanhã de manhã serei já outro. Que crente serei amanhã? Não o sei, porque era preciso estar já lá para o saber. Nem o Deus eterno em que hoje creio o saberá amanhã nem hoje, porque hoje sou eu e amanhã elle talvez já não tenha nunca existido.


Título: Não creio alto na felicidade dos animaes
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 417
Página: 160 - 161
Nota: [2-85, dact.];