Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 3-3r)

A arte livra-nos illusoriamente


A arte livra-nos illusoriamente da sordidez de sermos. Em-
quanto sentimos os males e as injurias de Hamlet, principe da Dinamarca,
não sentimos os nossos — vis porque são nossos e vis porque são vis.

O amor, o somno, as drogas e intoxicantes, são fórmas elemen-
tares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo effeito que ella. Mas a-
mor, somno, e drogas tem cada um a sua desillusão. O amor farta
ou desillude. Do somno disperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu.
As drogas pagam-se com a ruina de aquelle mesmo physico que serviram de
estimular. Mas na arte não ha desillusão porque a illusão foi admit-
tida desde o principio. Da arte não ha dispertar, porque nella não
dormimos, embora sonhassemos. Na arte não ha tributo ou multa
que paguemos por ter gosado d'ella.

O prazer que ella nos offerece, como em certo modo não é nos-
so, não temos nós que pagal-o ou que arrepender-nos d'elle.

Por arte entende-se tudo que nos delicía sem que seja nosso —
o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o uni-
verso objectivo.

Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque
é extrahir de uma coisa a sua essencia.