Não tendo que fazer


L. do D.

Não tendo que fazer, nem que pensar em fazer, vou pôr neste papel a descripção d'um ideal — apontamento.

A sensibilidade de Malharmé dentro do estilo de Vieira; sonhar como Verlaine no corpo de Horacio; ser Homero ao luar.

Sentir tudo de todas as maneiras; saber pensar com as emoções e sentir com o pensamento; não desejar muito senão com a imaginação; soffrer com coquetterie; ver claro para escrever justo; conhecer-se com fingimento e tactica, naturalizar-se differente e com todos os documentos; em summa, usar por dentro todas as sensações, descascando-as até Deus; mas embrulhar de novo e repôr na montra como aquelle caixeiro que de aqui estou vendo com as latas pequenas de graxa da nova marca.

Todos estes ideaes, possiveis ou impossiveis, acabam agora. Tenho a realidade deante de mim — não é sequer o caixeiro, é a mão d'elle (a elle não vejo) tentaculo absurdo de uma alma com familia e sorte [?] que faz tregeitos de aranha sem teia no esticar-se da reposição cá à frente.

/ E uma das latas cahiu, como o Destino de toda a gente. /


Título: Não tendo que fazer
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 30
Página: 31 - 32
Nota: [3-12, ms.];