As misérias de um homem que sente o tédio


As misérias de um homem que sente o tédio da vida do terraço da sua vila rica são uma coisa; são outra coisa as misérias de quem, como eu, tem que contemplar a paisagem do meu quarto num 4.º andar da Baixa, e sem poder esquecer que é ajudante de guarda-livros.

"Tout notaire a rêvé des sultanes"…

Tenho um prazer íntimo da ironia do ridículo imerecido, quando, sem que alguém estranhe, declaro, nos actos oficiais em que é preciso dizer a profissão: empregado no comércio. Não sei como inserto o meu nome vem assim no Anuário Comercial.

Epígrafe ao Diário:
Guedes (Vicente), empregado no comércio, Rua dos Retroseiros, 17-4.º
Anuário Comercial de Portugal

A mania do absurdo e do paradoxo é a alegria animal dos tristes. Como o homem normal diz disparates por vitalidade, e por sangue [,] dá palmadas nas costas de outros, os incapazes de entusiasmo e de alegria dão cambalhotas na inteligência e, a seu frio modo, fazem os gestos quentes da vida.


Título: As misérias de um homem que sente o tédio
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 599
Página: 484
Nota: [7-17, ms.];