Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 3-34r)

Reconhecer a realidade


                                    14/5/1930.

L. do D.

Reconhecer a realidade como uma fórma da illu-
são, e a illusão como uma fórma da realidade, é e-
gualmente necessario e egualmente inutil. A vida
contemplativa, para sequer existir, tem que conside-
rar os accidentes objectivos como premissas disper-
sas de uma conclusão inattingivel; mas tem ao mesmo
tempo que considerar as contigencias do sonho como
em certo modo dignas de aquella attenção a ellas,
pela qual nos tornamos contemplativos.

Qualquer coisa, conforme se considera, é um as-
sombro ou um estorvo, um tudo ou um nada, um caminho
ou uma preoccupação. Consideral-a cada vez
de um modo differente é renoval-a, multiplical-a por
si mesma. É porisso que o espirito contemplativo que
nunca sahiu da sua aldeia tem comtudo á sua ordem o
universo inteiro. Numa cella ou num deserto está o
infinito. Numa pedra dorme-se cosmicamente.

Ha, porém, occasiões da meditação — e a todos
quantos meditam ellas chegam — em que tudo está gas-
to, tudo velho, tudo visto, ainda que esteja por ver.
Porque, por mais que meditemos qualquer coisa, e, me-
ditando-a a transformemos, nunca a transformamos em
qualquer coisa que não seja substancia de meditação.
Chega-nos então a ansia da vida, de conhecer sem ser
com o conhecimento, de meditar só com os sentidos ou
pensar de um modo tactil ou sensivel, de dentro do
objecto pensado, como se fôssemos agua e elle esponja.
Então tambem temos a nossa noite, e o cansaço de to-
das as emoções aprofunda-se com serem emoções do pen-
samento, já de si profundas. Mas é uma noite sem re-
pouso, sem luar, sem estrellas, uma noite como se tu-
do houvesse sido virado do avesso — o infinito tor-
nado interior e apertado, o dia feito forro
negro de um trajo desconhecido.

Mais vale, sim, mais vale sempre ser a lesma hu-
mana que ama e desconhece, a sanguesuga que é repugnan-
te sem o saber. Ignorar como vida! sentir como esque-
cimento! Que episodios perdidos na esteira verde bran-
ca das naus idas, como um cuspo frio sob do leme alto a
servir de nariz sob os olhos das camaras velhas!