Ha sensações que são somnos


L. do D.

21-4-1930

Ha sensações que são somnos, que occupam como uma nevoa toda a extensão do espirito, que não deixam pensar, que não deixam agir, que não deixam claramente ser. Como se não tivessemos dormido, sobrevive em nós qualquer cousa de sonho, e ha um torpor do sol do dia a aquecer a superficie estagnada dos sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do pé á passagem.

Olha-se mas não se vê. A longa rua movimentada de bichos humanos é uma especie de taboleta deitada onde as lettras fossem moveis e não formassem sentidos. As casas são sòmente casas. Perde-se a possibilidade de dar um sentido ao que se vê, mas vê-se bem o que é, sim.

As pancadas de martello á porta do caixoteiro soam com uma extranheza proxima. Soam grandemente separadas, cada uma com echo e sem proveito. Os ruidos das carroças parecem de dia em que vem trovoada. As vozes sahem do ar, e não de gargantas. Ao fundo, o rio está cansado.

Não é tedio o que se sente. Não é magua o que se sente. É uma vontade de dormir com outra personalidade, de esquecer com melhoria de vencimento. Não se sente nada, a não ser um automatismo cá em baixo, a fazer umas pernas que nos pertencem levar a bater no chão, na marcha involuntaria, uns pés que se sentem dentro dos sapatos. Nem isto se sente talvez. Á roda dos olhos e como dedos nos ouvidos ha um aperto de dentro da cabeça.

Parece uma constipação na alma. E com a imagem litteraria de se estar doente nasce um desejo de que a vida fôsse uma convalescença, sem andar; e a idéa de convalescença evoca as quintas dos arredores, mas lá para dentro, onde são lares, longe da rua e das rodas. Sim, não se sente nada. Passa-se conscientemente, a dormir só com a impossibilidade de dar ao corpo outra direcção, a porta onde se deve entrar. Passa-se tudo. Que é do pandeiro, ó urso parado?

Leve, como uma cousa que começasse, a maresia da brisa pairou de sobre o Tejo e espalhou-se sujamente pelos principios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar morno. Senti a vida no estomago, e o olfacto tornou-se-me uma coisa por detraz dos olhos. Altas, pousavam em nada nuvens ralas, rolos, num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A atmosphera era de uma ameaça de ceu cobarde, como a de uma trovoada inaudivel, feita de ar sòmente.

Havia estagnação no proprio vôo das gaivotas; pareciam cousas mais leves que o ar, deixadas nelle por alguem. Nada abafava. A tarde cahia num desasocego nosso; o ar refrescava intermittentemente.

Pobres das esperanças que tenho tido, sahidas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, nevoas sem nevoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas ha maresia no meu proposito, e o baixamar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está alli fóra e não vejo senão pelo cheiro.

Tanta inconsequencia em querer bastar-me! Tanta consciencia sarcastica das sensações suppostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o rio, para dizer que me doe a vida no olfacto e na consciencia, para não saber dizer, como na phrase simples e ampla do Livro de Job, "Minha alma está cançada de minha vida!"


Título: Ha sensações que são somnos
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 159
Página: 177 - 180
Nota: [3-46 e 47, dact.];