No alto ermo dos montes


L. do D.

14-4-1930

No alto ermo dos montes naturaes temos, quando chegamos, a sensação do privilegio. Somos mais altos, de toda a nossa estatura, do que o alto dos montes. O maximo da Natureza, pelo menos naquelle logar, fica-nos sob as solas dos pés. Somos, por posição, reis do mundo visivel. Em torno de nós tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planicie que jaz, ante o erguimento e o pincaro que somos.

Tudo em nós é accidente e malicia, e esta altura que temos, não a temos; não somos mais altos no alto do que a nossa altura. Aquillo mesmo que calcamos, nos alça; e, se somos altos, é por aquillo mesmo de que somos mais altos.

Respira-se melhor quando se é rico; é-se mais livre quando se é celebre; o proprio ter de um titulo de nobreza é um pequeno monte. Tudo é artificio, mas o artificio nem sequer é nosso. Subimos a elle, ou levaram-nos até elle, ou nascemos na casa do monte.

Grande, porém, é o que considera que do valle ao ceu ou do monte ao ceu, a distancia que é differença não faz differença. Quando o diluvio crescesse, estariamos melhor nos montes. Mas quando a maldição de Deus fosse raios, como a de Jupiter, de ventos, como a de Eolo, o abrigo seria o não termos subido e a defeza o rastejarmos.

Sabio deveras é o que tem a possibilidade da altura nos musculos e a negação de subir no conhecimento. Elle tem, por visão, todos os montes; e tem, por posição, todos os valles. O sol que doura os pincaros, doural-os-ha para elle mais [que] para quem alli o soffre; e o palacio alto entre florestas será mais bello ao que o contempla do valle que ao que o esquece nas salas que o constituem de prisão.

Com estas reflexões me consolo, pois que me não posso consolar com a vida. E o symbolo funde-se-me com a realidade quando, transeunte de corpo e alma por estas ruas baixas que vão dar ao Tejo — vejo os altos claros da cidade explender, como a gloria alheia, / das luzes varias de um sol que já nem está no poente./


Título: No alto ermo dos montes
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 426
Página: 166 - 168
Data: 14-04-1930
Nota: [3-51, 52 e 53, ms.];