Paira-me à superficie do cansaço


L. do D.

Paira-me à superficie do cansaço qualquer coisa de aureo que ha sobre as aguas quando o sol findo as abandona. Vejo-me como ao lago que imaginei, e o que vejo nesse lago sou eu. Não sei como explique esta imagem, ou este symbolo, ou este eu em que me figuro. Mas o que tenho por certo é que vejo, como se de facto visse, um sol por traz de montes, dando raios perdidos sobre o lago que os recebe a ouro escuro.

Um dos maleficios de pensar é ver quando se está pensando. Os que pensam com o raciocinio estão distrahidos. Os que pensam com a emoção estão dormindo. Os que pensam com a vontade estão mortos. Eu, porém, penso com a imaginação, e tudo quanto deveria ser em mim ou razão, ou magua, ou impulso, se me reduz a qualquer cousa indifferente e distante, como este lago morto entre rochedos onde o ultimo do sol paira desalongadamente.

Porque parei, estremeceram as aguas. Porque reflecti, o sol recolheu-se. Cerro os olhos lentos e cheios de somno, e não ha dentro de mim senão uma região lacustre onde a noite começa a deixar de ser dia num reflexo castanho escuro de aguas de onde as algas surgem.

Porque escrevi, nada disse. Minha impressão é que o que existe é sempre em outra região, além de montes, e que ha grandes viagens por fazer se tivermos alma com que ter passos.

Cessei, como o sol na minha paisagem. Não fica, do que foi dito ou visto, senão uma noite já fechada, cheia de brilho morto de lagos, numa planicie sem patos bravos, morta, fluida, humida e sinistra.

28/3/1932.


Título: Paira-me à superficie do cansaço
Heterónimo: Não atribuído
Número: 388
Página: 384 - 385
Data: 28-03-1932
Nota: [3-75r];
Nota: O verso (3-75v - ms.) contém alguns apontamentos, transcritos por Jerónimo Pizarro como anexo ao texto 388 (2010: 925).