Não sei quantos terão contemplado


L. do D.

Não sei quantos terão contemplado, com o olhar que merece, uma rua deserta com gente nella. Já este modo de dizer parece querer dizer qualquer outra cousa, e effectivamente a quer dizer. Uma rua deserta não é uma rua onde não passa ninguem, mas uma rua onde os que passam, passam nella como se fôsse deserta. Não ha difficuldade em comprehender isto desde que se o tenha visto: uma zebra é impossivel para quem não conheça mais que um burro.

As sensações ajustam-se, dentro de nós, a certos graus e typos da comprehensão d'ellas. Ha maneiras de entender que teem maneiras de ser entendidas.

Ha dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça propria, um tedio, uma magua, uma angustia de viver que só me não parece insupportavel porque de facto a supporto. É um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os póros, uma breve noticia do fim.


Título: Não sei quantos terão contemplado
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 331
Página: 67 - 68
Nota: [3-80, dact.];