Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 3-81)

Uma das minhas preoccupações constantes


L. do D.

Uma das minhas preoccupações constantes é o com-
prehender como é que outra gente existe, como é que ha almas
que não sejam a minha, consciencias extranhas à minha consci-
encia, que, por ser consciencia, me parece ser a unica. Com-
prehendo bem que o homem que está deante de mim, e me falla
com palavras eguaes às minhas, e me fez gestos que são
como eu faço ou poderia fazer, seja de algum modo meu simi-
lhante. O mesmo, porém, me succede com as gravuras nas que sonho das il-
lustrações, com as personagens que vejo dos romances, com as pessoas
dramaticas que no palco passam me fallam atravez dos actores que as fi-
guram.

Ninguem, supponho, admitte verdadeiramente a exis-
tencia real de outra pessoa. Pode conceder que essa pessoa
seja viva, que sinta e pense como elle; mas haverá sempre um
elemento anonymo de differença, uma desvantagem
materializada. Ha figuras de tempos idos, imagens espi-
ritos em livros, que são para nós realidades maiores que a-
quellas indifferenças incarnadas que fallam comnosco por cima
dos balcões, ou nos olham por acaso nos electricos, ou nos
roçam, transeuntes, no acaso morto das ruas. Os outros não são para
nós mais que paisagem, e, quasi sempre, paisagem invisivel de rua conhecida.


Tenho por mais minhas, com maior parentesco e inti-
midade, certas figuras que estão escriptas em livros, certas
imagens que conheci de estampas, do que muitas pessoas, a que
chamam reaes, que são d'essa inutilidade metaphysica chamada
carne e osso. E "carne e osso", de facto, as descreve bem:
parecem coisas cortadas postas no exterior marmoreo de um ta-
lho, mortes sangrando como vidas, pernas e costelletas do Des-
tino.

Não me envergonho de sentir assim por que já vi
que todos sentem assim. O que parece haver de desprezo entre
homem e homem, de indifferente que permitte que se mate gen-
te sem que se sinta que se mata, como entre os assassinos,
ou sem que se pense que se está matando, como entre os solda-
dos, é que ninguem presta a devida attenção ao facto, parece
que abstruso, de que os outros são almas tambem.

Em certos dias, em certas horas, trazidas até mim
por não sei que brisa, abertas a mim por o abrir de não sei
que porta, sinto de repente que o merceeiro da esquina é um
ente espiritual, que o marçano, que neste momento se debruça
à porta sobre o saco de batatas, é, verdadeiramente, uma al-
ma capaz de soffrer.

Quando hontem me disseram que o empregado da taba-
caria se tinha suicidado, tive uma impressão de mentira. Coi-
tado, tambem existia! Tinhamos esquecido isso, nós todos
nós todos que o conheciamos do mesmo modo que todos que o não conheceram
. A-
manhã esquecel-o-hemos melhor. Mas que havia alma, havia, pa-
ra que se matasse. Paixões? Angustias? Sem duvida... Mas a
mim, como à humanidade inteira, há só a memoria de um sorriso
parvo por cima de um casaco de mescla, sujo, e desegual nos


hombros. É quanto me resta, a mim, de quem tanto sentiu que
se matou de sentir, porque, emfim, de outra coisa se não deve
matar alguem... Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros, que
encalveceria cedo. Afinal não teve tempo para encalvecer. É uma das
memorias que me restam d'elle. Que outra me haveria de restar se esta, afinal,
não é
d'elle
mas de
um
pensamento
meu?


Tenho subitamente a visão do cadaver, do caixão em
que o metteram, da cova, inteiramente alheia, a que o haviam
de ter levado. E vejo, de repente, que o caixeiro da tabaca-
ria era, em certo modo, casaco torto e tudo, a humanidade in-
teira.

Foi só um momento. Hoje, agora, claramente, como
homem que sou, elle morreu. Mais nada.

Sim, os outros não existem... É para mim que este
poente estagna, pesadamente alado, as suas cores nevoentas e
duras. Para mim, sob o poente,
treme, sem que eu
veja que corre, o grande rio. Foi feito para mim
este largo aberto sobre o rio cuja maré chega.
Foi enterrado hoje na valla comum o caixeiro
da tabacaria? Não é para elle o poente hoje.
Mas, de o pensar, e sem que eu queira, tambem
deixou de ser para mim...