Edição do Arquivo LdoD - Usa (Descobrimento, nº 3)

Prefiro a prosa ao verso



                Do "Livro do Desasocego"
          composto por Bernardo Soares, ajudante
          de guarda-livros na cidade de Lisboa,

                          por

                    Fernando Pessoa


                          I

Prefiro a prosa ao verso, como modo de arte, por duas
razões, das quais a primeira, que é minha, é que não tenho
escolha, pois sou incapaz de escrever em verso. A segunda
porém, é de todos, e não é — creio bem — uma sombra ou dis-
farce da primeira. Vale pois a pena que eu a esfie, porque
toca no sentido íntimo de tôda a valia da arte.

Considero o verso como uma coisa intermédia, uma passa-
gem da música para a prosa. Como a música, o verso é limi-
tado por leis rítmicas, que, ainda que não sejam as leis rígidas
do verso regular, existem todavia como resguardos, coacções,
dispositivos automáticos de opressão e castigo. Na prosa fala-
mos livres. Podemos incluir ritmos musicais, e contudo pensar.
Podemos incluir ritmos poéticos, e contudo estar fóra dêles.
Um ritmo ocasional de verso não estorva a prosa; um ritmo
ocasional de prosa faz tropeçar o verso.

Na prosa se engloba tôda a arte — em parte porque na pa-
lavra se contém todo o mundo, em parte porque na palavra
livre se contém tôda a possibilidade de o dizer e pensar. Na
prosa damos tudo, por transposição: a côr e a forma, que a
pintura não pode dar senão directamente, em elas mesmas, sem
dimensão íntima; o ritmo, que a música não pode dar senão di-
rectamente, nêle mesmo, sem corpo formal, nem aquele segundo
corpo que é a idea; a estrutura, que o arquiteto tem que formar


de coisas duras, dadas, externas, e nós erguemos em ritmos,
em indecisões, em decursos e fluidezas; a realidade, que o
escultor tem que deixar no mundo, sem aura nem transubstan-
ciação; a poesia, enfim, em que o poeta, como o iniciado em uma
ordem oculta, é servo, ainda que voluntário, de um grau e de
um ritual.

Creio bem que, em um mundo civilizado perfeito, não have-
ria outra arte que não a prosa. Deixaríamos os poentes aos
mesmos poentes, cuidando apenas, em arte, de os compreender
verbalmente, assim os transmitindo em música inteligível de côr.
Não faríamos escultura dos corpos, que guardariam próprios,
vistos e tocados, o seu relêvo móbil e o seu morno suave. Fa-
ríamos casas só para morar nelas, que é, enfim, o para que elas
são. A poesia ficaria para as crianças se aproximarem da
prosa futura; que a poesia é, por certo, qualquer coisa de in-
fantil, de mnemónico, de auxiliar e inicial.

Até as artes menores, ou as que assim podemos chamar, se
reflectem, múrmuras, na prosa. Há prosa que dança, que canta,
que se declama a si mesma. Há ritmos verbais que são baila-
dos, em que a idea se desnuda sinuosamente, numa sensualidade
translúcida e perfeita. E há também na prosa subtilezas con-
vulsas em que um grande actor, o Verbo, transmuda ritmica-
mente em sua substância corpórea o mistério impalpável do
universo.