Semântica da Vida - Usa (BNP/E3, 4-11)

Atraz dos primeiros menos-calores


                                                14/9/1931.

L. do D.

Atraz dos primeiros menos-calores do estio findo vieram,
nos acasos das tardes, certos coloridos mais brandos do ceu
amplo, certos retoques de brisa fria que annunciavam o automno.
Não era ainda o desverde da folhagem, ou o desprender em -se das
folhas, nem aquella vaga angustia que acompanha a nossa sensa-
ção da morte externa, porque o ha de ser tambem a nossa. Era
como um cansaço do exforço existente, um vago somno sobrevindo
aos ultimos gestos de agir. Ah, são tardes de uma tam maguada
indifferença, que, antes que comece nas coisas, começa em nós
o outomno.

Cada outomno que vem é mais perto do ultimo outomno que
teremos, e o mesmo é verdade do verão ou do estio; mas o outo-
mno lembra, por o que é, o acabamento de tudo, e no verão ou
no estio é fácil, de olhar, que o esqueçamos. Não é ainda o
outomno, não está ainda no ar o amarello das folhas cahidas ou
a tristeza humida do tempo que vae ser inverno mais tarde.
Mas ha um resquicio de tristeza anticipada, uma magua vestida
para a viagem, no sentimento em que somos vagamente attentos
à diffusão colorida das coisas, ao outro tom do vento, ao so-
cego mais velho que se alastra, se a noite cahe, pela presença
inevitavel do universo.

Sim, passaremos todos, passaremos tudo. Nada ficará do
que usou sentimentos e luvas, do que fallou da morte e da po-
litica local. Como é a mesma luz que illumina as faces dos
santos e as polainas dos transeuntes, assim será a mesma falta
de luz que deixará no escuro o nada que ficar de uns terem
sido santos e outros usadores de polainas. No vasto redemoi-
nho, como o das folhas seccas, em que jaz indolentemente o
mundo inteiro, tanto faz os reinos como os vestidos das cos-
tureiras, e as tranças das creanças louras vão no mesmo giro
mortal que os sceptros que figuraram imperios. Tudo é nada,
e no atrio do Invisivel, cuja porta aberta mostra apenas, de-
fronte, uma porta fechada, bailam, servas desse vento que as
remexe sem mãos, todas as coisas, pequenas e grandes, que for-
maram, para nós e em nós, o systema sentido do universo. Tudo
é sombra e pó mexido, nem ha voz senão a do som que faz o que
vento ergue e arrasta, nem silencio senão do que o ven-
to deixa. Uns, folhas leves, menos presas de terra por mais
leves, vão altas do rodopio do Atrio e cahem mais longe que o
circulo dos pesados. Outros, invisiveis quasi, pó egual, dif-
ferente só se o vissemos de perto, faz cama a si mesmo no
redemoinho. Outros ainda, miniaturas de troncos, são arrastados á
roda e cessam aqui e alli. Um dia, no fim do conhecimento das
coisas, abrir-se-ha a porta do
fundo, e tudo o que fomos — lixo de estrellas e de almas —
será varrido para fóra da casa, para que o que ha recomece.

Meu coração doe-me como um corpo extranho. Meu cerebro


dorme tudo quanto sinto. Sim, é o principio do outomno que
traz ao ar e á minha alma aquella luz sem sorriso que vae
orlando de amarello morto o arredondamento confuso das
poucas nuvens do poente. Sim, é o principio do outomno, e o
conhecimento claro, na hora limpida, da insufficiencia
anonyma de tudo. O outomno, sim, o outomno, o que
ha ou o que vae haver, e o cansaço anticipado de todos os ges-
tos, a desillusão anticipada de todos os sonhos. Que posso
eu esperar e de quê? Já, no que penso de mim, vou entre as
folhas e os pós do atrio, na orbita sem sentido de coisa ne-
nhuma, fazendo som de vida nas lages limpas que um sol angu-
lar doura de fim não sei onde.

Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto
fiz ou não fiz — tudo isso irá no outomno, como os phos-
phoros gastos que juncam o chão em diversos sentidos, ou
os papeis amarrotados em bolas falsas, ou os grandes impe-
rios, as religiões todas, as philosophias com que brinca-
ram, fazendo-as, as creanças somnolentas do abysmo. Tudo
quanto foi minha alma, desde tudo a que aspirei á casa
vulgar em que moro, desde os deuses que tive ao pa-
trão Vasques que tambem tive tenho, tudo vae no outomno, tudo
no outomno, na ternura indifferente do outomno.
Tudo no outomno, sim, tudo no outomno...