Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 4-22r)

Quando vim primeiro para Lisboa


                                      3/12/1931.

L. do D.

Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no
andar lá de cima de onde moravamos, um som de piano tocado
em escalas, apprendizagem monotona da menina que nunca vi.
Descubro hoje que, por processos de infiltração que desco-
nheço, tenho ainda nas caves da alma, audiveis se abrem a
porta lá de baixo, as escalas repetidas, tècladas, da menina
hoje senhora outra, ou morta e fechada num logar branco cheio de brancos onde
verdejam negros os cyprestes.

Era eu creança, e hoje não o sou; o som,
porém, é egual na recordação ao que era na verdade, e tem,
perennemente presente, se se ergue de onde finge que dorme,
a mesma lenta tèclagem, a mesma rhythmica monotonia. Invade-
me, de o considerar ou sentir, uma tristeza diffusa, angus-
tiosa, minha.

Não chóro a perda da minha infancia; chóro que tudo, e
nelle a (minha) infancia, se perca. É a fuga abstracta do
tempo, não a fuga concreta do tempo que é meu, que me doe
no cerebro physico pela recorrencia repetida, invo-
luntaria, das escalas do piano lá de cima, terrivelmente
anonymo e longinquo. É todo o mysterio de que nada dura que
martella repetidamente coisas que não chegam a ser musica,
mas são saudade, no fundo absurdo da minha recordação.

Insensivelmente, num erguer visual, vejo a saleta
que nunca vi, onde a apprendiza que não conheci está a-
inda hoje relatando, dedo a dedo cuidados, as escalas sempre
eguaes do que já está morto. Vejo, vou vendo mais, reconstrúo
vendo. E todo o lar lá do andar lá de cima, saudoso hoje mas
não hontem, vem erguendo-se ficticio da minha contemplação
desentendida.

Supponho, porém, que nisto tudo sou translato, que
a saudade que sinto não é bem minha, nem bem abstracta, mas
a emoção interceptada de não sei que terceiro, a quem estas
emoções, que em mim são literarias, fôssem, — dil-o-hia Vieira —
literaes. É na minha supposição de sentir que me magôo e
angustío, e as saudades, a cuja sensação se me mareiam os o-
lhos proprios, é por imaginação e outridade que
as penso e sinto.

E sempre, com uma constancia que vem do fundo do
mundo, com uma persistencia que estuda metaphysicamente,
soam, soam, soam, as escalas de quem apprende piano, pela
espinha dorsal physica da minha recordação. São
as ruas antigas com outra gente, hoje as mesmas ruas diver-
sas; são pessoas mortas que me estão fallando, atravez da
transparencia da falta d'ellas hoje; são remorsos do que
fiz ou não fiz, sons de regatos na noite, ruidos lá
em baixo na casa queda.


Tenho ganas de gritar dentro da cabeça. Quero parar, esmagar,
partir esse impossivel disco registo gramophonico que soa dentro de mim, em
casa alheia, torturador intangivel. Quero mandar parar a alma,
para que ella, como vehiculo que me occupassem, siga para deante só e
me deixe. Endoideço de ter que ouvir. E por fim sou eu, no meu


cerebro directamente sensivel, na minha
pelle pellicular arrepiada nos meus nervos postos
á superficie, as teclas tecladas em
escalas, ó piano horroroso e pessoal da nossa
recordação
do som da recordação.

E sempre, sempre, como que numa parte do cerebro que se
tornasse independente, soam, soam, soam as escalas lá em
baixo, lá em cima, da primeira casa de Lisboa onde vim habitar.