Semântica da Vida - Usa (BNP/E3, 4-34r)

Releio passivamente, recebendo o que sinto


                                            24/3/1930.


L. do D.

Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspi-
ração e um livramento, aquellas phrases simples de Caeiro, na
referencia natural ao que resulta do pequeno tamanho da sua
aldeia. D'alli, diz elle, porque é pequena, pode ver-se mais
do mundo do que da cidade; e porisso a aldeia é maior que a
cidade... "Porque eu sou do tamanho do que vejo
            E não do tamanho da minha altura ".

Phrases como estas, que parecem crescer sem vontade que as
houvesse dicto, limpam-me de toda a metaphysica que espontanea-
mente accrescento á vida. Depois de as ler, chego á minha ja-
nella sobre a rua estreita, olho o grande ceu e os muitos as-
tros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me es-
tremece no corpo todo.

"Sou do tamanho do que vejo!" Cada vez que penso es-
ta phrase com toda a attenção dos meus nervos, ella me parece
mais destinada a reconstruir constelladamente o universo. "Sou
do tamanho do que vejo!" Que grande posse mental vae desde o
poço das emoções profundas até ás altas estrellas que se refle-
ctem nelle, e, assim, em certo modo, alli estão.

E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metaphysica
objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade
de morrer cantando. "Sou do tamanho do que vejo!" E o vago luar,
inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do ho-
rizonte.

Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma
selvageria ignorada, de dizer palavras aos mysterios altos, de
affirmar uma nova personalidade larga vasta aos grandes espaços da
materia vazia.

Mas recolho-me e abrando. "Sou do tamanho do que vejo!" E
a phrase fica-me sendo a alma inteira, encosto a ella todas
as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a ci-
dade por fóra, cahe a paz indecifravel do luar duro que começa largo com
o anoitecer.