Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(229)

O céu negro ao fundo do sul do Tejo


                                            4/4/1930.

L. do D.

O céu negro ao fundo do sul do Tejo era sinistramente
negro contra as azas, por contraste, vividamente brancas das
gaivotas em vôo inquieto. O dia, porém, não estava tempes-
tuoso já. Toda a massa da ameaça da chuva passára para por
sobre a outra margem, e a cidade baixa, humida ainda do pou-
co que chovera, sorria do chão a um céu cujo Norte se azula-
va ainda um pouco brancamente. O fresco da primavera era levemente frio.

Numa hora como estas, vazia e imponderavel, apraz-me
conduzir voluntariamente o pensamento para uma meditação que
nada seja, mas que retenha, na sua limpidez de nulla, qual-
quer coisa da frieza erma do dia esclarecido, com o fundo
negro ao longe, e certas intuições, como gaivotas, e-
vocando por contraste o mysterio de tudo em grande negrume.

Mas, de repente, em contrario do meu proposito literario
intimo, o fundo negro do céu do Sul evoca-me, por lembrança
verdadeira ou falsa, outro céu, talvez visto em outra vida,
em um Norte de rio menor, com juncaes tristes e sem cidade
nenhuma. Sem que eu saiba como, uma paisagem para patos bra-
vos alastra-se-me pela imaginação e é com a nitidez de um sonho
raro que me sinto próximo da extensão que imagino.

Terra de juncaes á beira de rios, terreno para caçadores
e angustias, as margens irregulares entram, como pequenos cabos
sujos, nas aguas côr de chumbo amarello, e reentram em bahias
limosas, para barcos de quasi brinquedo, em ribeiras que teem
agua a luzir á tona de lama occulta entre as hastes verde-
negras dos juncos, por onde se não pode andar.

A desolação é de um céu cinzento morto, aqui e alli arre-
panhando-se em nuvens mais negras que o tom do céu. Não sinto
vento, mas ha-o, e a outra margem, afinal, é uma ilha longa,
por traz da qual se divisa — grande e abandonado rio! — a outra
margem verdadeira, deitada na distancia sem relevo.

Ninguem alli chega, nem chegará. Ainda que, por uma fuga
contradictoria do tempo e do espaço, eu pudesse evadir-me do
mundo para essa paisagem, ninguem alli chegaria nunca. Esperaria
em vão o que não saberia que esperava, nem haveria senão, no fim
de tudo, um cahir lento da noite, tornando-se todo o espaço, lenta-
mente, da côr das nuvens mais negras, que pouco a pouco se mer-
giam no conjuncto abolido do céu.

E, de repente, sinto aqui o frio de alli. Toca-me no corpo,
vindo dos ossos. Respiro alto e disperto. O homem, que cruza
commigo sob a Arcada ao pé da Bolsa, olha-me com uma desconfian-
ça de quem não sabe explicar. O céu negro, apertando-se desceu mais baixo duro sobre o Sul.