O céu negro ao fundo do sul do Tejo


L. do D.

4-4-1930

O céu negro ao fundo do sul do Tejo era sinistramente negro contra as azas, por contraste, vividamente brancas das gaivotas em vôo inquieto. O dia, porém, não estava tempestuoso já. Toda a massa da ameaça da chuva passara para por sobre a outra margem, e a cidade baixa, humida ainda do pouco que chovera, sorria do chão a um céu cujo Norte se azulava ainda um pouco brancamente. O fresco da primavera era levemente frio.

Numa hora como esta, vazia e imponderavel, apraz-me conduzir voluntariamente o pensamento para uma meditação que nada seja, mas que retenha, na sua limpidez de nulla, qualquer coisa da frieza erma do dia esclarecido, com o fundo negro ao longe, e certas intuições, como gaivotas, evocando por contraste o mysterio de tudo em grande negrume.

Mas, de repente, em contrario do meu proposito literario intimo, o fundo negro do céu do Sul evoca-me, por lembrança verdadeira ou falsa, outro céu, talvez visto em outra vida, em um Norte de rio menor, com juncaes tristes e sem cidade nenhuma. Sem que eu saiba como, uma paisagem para patos bravos alastra-se-me pela imaginação e é com a nitidez de um sonho raro que me sinto próximo da extensão que imagino.

Terra de juncaes á beira de rios, terreno para caçadores e angustias, as margens irregulares entram, como pequenos cabos sujos, nas aguas cor de chumbo amarello, e reentram em bahias limosas, para barcos de quasi brinquedo, em ribeiras que teem água a luzir á tona de lama occulta entre as hastes verde-negras dos juncos, por onde se não pode andar.

A desolação é de um céu cinzento morto, aqui e alli arrepanhando-se em nuvens mais negras que o tom do céu. Não sinto vento, mas ha-o, e a outra margem, afinal, é uma ilha longa, por traz da qual se divisa — grande e abandonado rio! — a outra margem verdadeira, deitada na distancia sem relevo.

Ninguem alli chega, nem chegará. Ainda que, por uma fuga contradictoria do tempo e do espaço, eu pudesse evadir-me do mundo para essa paisagem, ninguem alli chegaria nunca. Esperaria em vão o que não saberia que esperava, nem haveria senão, no fim de tudo, um cahir lento da noite, tornando-se todo o espaço, lentamente, da côr das nuvens mais negras, que pouco a pouco se mergiam [sic] no conjuncto abolido do céu.

E, de repente, sinto aqui o frio de alli. Toca-me no corpo, vindo dos ossos. Respiro alto e disperto. O homem, que cruza commigo sob a Arcada ao pé da Bolsa, olha-me com uma desconfiança de quem não sabe explicar. O ceu negro, apertando-se desceu mais baixo sobre o Sul.


Título: O céu negro ao fundo do sul do Tejo
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 141
Página: 153 - 154
Data: 04-04-1930
Nota: [4-42, dact.];