Nevoa ou fumo?


L. do D.

2-11-1932

Nevoa ou fumo? Subia da terra ou descia do ceu? Não se sabia: era mais como uma doença do ar que uma descida ou uma emanação. Por vezes parecia mais uma doença dos olhos do que uma realidade da natureza.

Fosse o que fosse ia por toda a paisagem uma inquietação turva, feita de esquecimento e de attenuação. Era como se o silencio do mau sol tomasse para seu um corpo imperfeito. Dir-se-hia que ia acontecer qualquer cousa e que por toda a parte havia uma intuição, pela qual o visivel se velava.

Era difficil dizer se o ceu tinha nuvens ou antes nevoa. Era um torpor baço, aqui e alli colorido, um acinzentamento imponderavelmente amarellado, salvo onde se esboroava em côr-de-rosa falso, ou onde estagnava azulescendo, mas ahi não se distinguia se era o ceu que se revelava, se era outro azul que o encobria.

Nada era definido, nem o indefinido. Porisso appetecia chamar fumo à nevoa, por ella não parecer nevoa, ou perguntar se era nevoa ou fumo, por nada se perceber do que era. O mesmo calor do ar collaborava na duvida. Não era calor, nem frio, nem fresco; parecia compôr a sua temperatura de elementos tirados de outras coisas que o calor. Dir-se-hia, deveras, que uma nevoa fria aos olhos era quente ao tacto, como se tacto e vista fossem dois modos sensiveis do mesmo sentido.

Nem era, em torno dos contornos das arvores, ou das esquinas dos edificios, aquelle esbater de recortes ou de arestas, que a verdadeira nevoa traz, estagnando, ou o verdadeiro fumo, natural, entreabre e entrescurece. Era como se cada cousa projectasse de si uma sombra vagamente diurna, em todos os sentidos, sem luz que a explicasse como sombra, sem logar de projecção que a justificasse como visivel.

Nem visivel era: era como um começo de ir a ver-se qualquer cousa, mas em toda a parte por egual, como se o a revelar hesitasse em ser apparecido.

E que sentimento havia? A impossibilidade de o ter, o coração desfeito na cabeça, os sentimentos confundidos, um torpor da existencia disperta, um apurar de qualquer coisa animica como o ouvido, para uma revelação definitiva, inutil, sempre a apparecer já, como a verdade, sempre, como a verdade, gemea de nunca apparecer.

Até a vontade de dormir, que lembra ao pensamento, desappartei [?], por parecer um exforço o mero bocejo de a ter. Até deixar de ver faz doer os olhos. E, na abdicação incolor da alma inteira, só os ruidos exteriores, longe, são o mundo impossivel que ainda existe.

Ah, outro mundo, outras cousas, outra alma com que sentil-as, outro pensamento com que saber dessa alma! Tudo, até o tedio, menos este esfumar comum da alma e das coisas, este desamparo azulado da indefinição de tudo!


Título: Nevoa ou fumo?
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 111
Página: 114 - 116
Data: 02-11-1932
Nota: [4-48, ms.];