Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 4-49)

Ha muito — não sei se ha dias


L. do D.

Ha muito — não sei se ha dias, se ha mezes — não
registro impressão nenhuma; não penso, portanto não existo.
Estou esquecido de quem sou; não sei escrever por que não
sei ser. Por um adormecimento obliquo, tenho sido outro. Sa-
ber que me não lembro é dispertar.

Desmaiei um bocado da minha vida. Volto a mim sem
memoria do que tenho sido, e a do que fui soffre de ter sido
interrompida. Ha em mim uma noção confusa de um intervallo
incognito, um exforço futil de parte da memoria para querer
encontrar a outra. Não consigo reatar-me. Se tenho vivido,
esqueci-me de o saber.

Não é que seja este primeiro dia do outomno sensi-
vel — o primeiro de frio não fresco que veste o estio morto
de menos luz — que me dê, numa transparencia alheada, uma
sensação de designio morto ou de vontade falsa. Não é que ha-
ja, neste interludio de coisas perdidas, um vestigio incerto
de memoria inutil. É, mais dolorosamente que isso, um
tedio de estar lembrando o que se não recorda, um desalento
do que a consciencia perdeu entre algas ou juncos, à beira
não sei de quê.

Conheço que o dia, limpido e immovel, tem um céu
positivo e azul menos claro que o azul profundo. Conheço
que o sol, vagamente menos de ouro que era, doura de reflexos
humidos os muros e as janellas. Conheço que, não havendo ven-
to, ou brisa que o lembre e negue, dorme todavia uma frescura
disperta pela cidade indefinida. Conheço tudo isso, sem pen-
sar nem crer, e não tenho somno senão por lembrança, nem sau-
dade senão por desasocego.

Convalesço, esteril e longinquo, da doença que não
tive. Predisponho-me, agil de dispertar, ao que não ouso. Que
somno me não deixou dormir? Que affago me não quiz fallar?
Que bom ser outro com este hausto frio de primavera forte!
Que bom poder ao menos pensal-o, melhor que a vida, emquanto,
ao longe na imagem relembrada, os juncos, sem vento que se sin-
ta, se inclinam glaucos da ribeira!


Quantas vezes, relembrando quem não fui, me medito jovem
e esqueço! E eram outras que foram as paisagens que não vi nunca;
eram novas sem terem sido as paisagens que deveras vi. Que me
importa? Findei a acasos e intersticios, e, emquanto o fresco
do dia é o do sol mesmo, dormem frios, no poente que vejo
sem ter, os juncos escuros da ribeira.

                      28/9/1932.