Aquella malicia incerta


L. do D.

Aquella malicia incerta e quasi imponderavel que alegra qualquer coração humano ante a dor dos outros, e o desconforto alheio, ponho-a eu no exame das minhas proprias dores, levo-a tão longe que nas occasiões em que me sinto ridiculo ou mesquinho, goso-o como se fosse outro que o estivesse sendo. Por uma extranha e fantastica transformação de sentimentos, acontece que não sinto essa alegria maldosa e humanissima perante a dor e o ridiculo alheio. Sinto perante o rebaixamento dos outros não uma dôr, mas um desconforto esthetico e uma irritação sinuosa. Não é por bondade que isto acontece, mas sim porque quem se torna ridiculo não é só para mim que se torna ridiculo, mas para os outros também, e irrita-me que alguem esteja sendo ridiculo para os outros, doe-me que qualquer animal da espécie humana ria a custa de outro, quando não tem direito de o fazer. De os outros se rirem à minha custa não me importo, porque de mim para fora ha um desprezo profícuo e blindado.

Mais terrivel de que qualquer muro, puz grades altíssimas a demarcar o jardim do meu sêr, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os exclúo e mantenho outros.

Escolher modos de não agir foi sempre a attenção e o escrupulo da minha vida.

Não me submetto ao estado nem aos homens; resisto inertemente. O estado só me pode querer para uma acção qualquer. Não agindo eu, elle nada de mim consegue. Hoje já não se mata, e elle apenas me pode incommodar; se isso acontecer, terei que blindar mais o meu espirito e viver mais longe a dentro dos meus sonhos. Mas isso não aconteceu nunca. Nunca me apoquentou o estado. Creio que a sorte soube providenciar.


Título: Aquella malicia incerta
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 241
Página: 268 - 269
Nota: [4-67, dact.];