[LITANIA DA DESESPERANÇA] Pensaste já, /ó Outra/


Pensaste já, /ó Outra/, quão invisíveis somos uns para os outros? Meditaste já em quanto nos desconhecemos? Vemo-nos e não nos vemos. Ouvimo-nos e cada um escuta apenas uma voz que está dentro de si.

As palavras dos outros são erros do nosso ouvir, naufrágios do nosso entender. Com que confiança cremos no /nosso/ sentido das palavras dos outros. Sabem-nos a morte volúpias que outros põem em palavras. Lemos volúpia e vida no que outros deixam cair dos lábios sem intenção de dar sentido profundo.

A voz dos regatos que interpretas, pura explicadora, a voz das árvores onde pomos sentido no seu murmúrio — ah, meu amor ignoto, quanto tudo isso é nós e fantasias tudo de cinza que se escoa pelas grades da nossa cela!


Título: [LITANIA DA DESESPERANÇA] Pensaste já, /ó Outra/
Heterónimo: Vicente Guedes
Número: 32
Página: 76
Nota: [4-87, ms.];Teresa Sobral Cunha edita este texto como parte da sequência '[LITANIA DA DESESPERANÇA]' (2008: 75-78).;